Leia aqui um trecho de "desvarios", de Felipe Feijão:
Ei, psiu!
Sempre que ele ia vigiar a creche, que fica perto lá de casa, eu ia levar a comida dele. Na maioria das vezes ele vigiava de noite, mas tinha vez que era de manhã também.
Vez em quando a gente brigava. Por besteira ele começava a discussão. Dizia que eu saía muito. Que quando ia na bodega demorava muito. Que quando ia na vizinha, minha única amiga, também custava. Nas piores brigas já tinha me dado empurrão e tapa na cara.
Aí um dia ele saiu. Fiz a janta dele. Galinha cozida com bastante batata do jeito que ele gosta. Quando fui abrir a porta da rua pra ir deixar, vi que estava trancada dentro de casa.
Aí pouco tempo depois ele chegou.
“Por que me deixou trancada?”
“Bora. Vamos comigo. Pra você voltar com as coisas da janta.”
Eu, inocente, fui.
A creche, que está em construção, fica numa rua isolada, onde só tem mato do lado e do outro.
Chegamos lá e entramos. Ele abriu uma sala:
“Entra, entra.”
Nunca eu tinha entrado, da calçada mesmo voltava.
Apontou pro colchonete:
“Deita ali.”
Olhei pra ele com uma cara de rejeição:
“Melhor não. Aqui não.”
“Deita, deita!”, gritou.
Obedeci. Ele saiu e trancou a sala.
Em seguida voltou com uma cadeira de plástico. Sentou de frente pra mim, pegou a marmita e começou a comer. Abriu a garrafa com suco e vez em quando dava enormes goladas.
“Você vai ficar aqui. Passar um tempo aqui. Precisando se aquietar.”
“Aqui? Por quê? Aqui?”
Não respondeu. Calado, terminou de comer e saiu.
Eu gritei pedindo que ele me tirasse dali, mas, cansada e já quase rouca, acabei dormindo.
De manhã, acordei com ele abrindo a porta.
“Come aí”, disse, jogando pão dormido e chocolate pronto.
Depois chegou com um balde:
“Faz aqui, que eu levo pra esvaziar a sujeira e limpar.”
Passei três dias assim. No último dia, de manhã cedo ele saiu. Eu não aguentava mais. Me agarrei com a maçaneta da porta, forcei, puxei, me estrebuchei até conseguir abrir.
Aí saí da sala e fui pra frente. Mas o portão estava trancado. Só que eu via atrás das grades a rua e quem passava me via e ouvia.
Eu tinha medo que ele aparecesse. Vi um menino passar. O menino que me ajudou, isso mesmo. Chamei, chamei: Ei, psiu! Ele chegou perto. Criança, podia não saber dar o recado direito.
“Espera aqui, por favor.”
Olhei pros dois lados. Voltei pra sala. Nas coisas dele tinha um caderninho e uma caneta. Escrevi:
POLÍCIA PRECISO DE AJUDA!
NA CRECHE QUE ESTÃO CONSTRUINDO
RÁPIDO
Voltei e entreguei ao menino:
“Vá na polícia, na delegacia e entregue isso, viu? Entendeu? Chegue lá e entregue esse papel. Mas vá mesmo. Certo?”
Assustado, o menino olhou pra mim e saiu correndo.
Aí graças a Deus vocês chegaram, doutor. Graças ao meu bom Deus. Pra casa eu não volto, doutor. Tomara que peguem ele.
desvarios, de felipe feijão
Felipe Feijão nasceu em Fortaleza, em 1996. Graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. É professor e colabora com jornais de Fortaleza. Publicou os livros Pequenas Histórias (2020) e O frango morto que voou (2023).