Leia aqui um trecho de "grito do fundo do poço", de Damásio Marques:
Ninguém precisou chegar ao fundo.
Porque quando ali chegaram naquela casa, o poço já estava construído. De seu interior já se podia enxergar seus tijolinhos de barro simetricamente enfileirados e minuciosamente rejuntados com concreto que os separavam dos outros de cima e de baixo e dos da esquerda e da direita deixando-os ainda mais aparentes e viçosos aos olhos infantis que em tudo imaginam desenhos. No exterior, no topo, fizeram uma imensa tampa de concreto redonda com uma abertura retangular no centro. Sobre ela, uma estrutura para suportar um cilindro para a corda, puxada a manivela, responsável por imergir um balde galvanizado que trazia água. Mais tarde, tudo isso foi modernizado com a introdução de uma bomba elétrica.
Como não havia água canalizada ainda no bairro, muito menos esgoto, aquela servia para beber, cozinhar, para tomar banho, para a descarga, a lavagem de roupa e era reutilizada para limpeza do quintal.
O cuidado com as crianças era sempre observado: “não andem em cima do poço”; “cuidado com o poço!”
O uso da bomba elétrica para puxar a água aumentou ainda mais a importância daquele buraco maravilhoso, que fornecia vida para a família. Agora não precisavam mais descer o balde, subi-lo com dificuldade pelo peso. Era só ligar a bomba e a água chegava até a caixa no topo do telhado. Dali era distribuída para torneiras, chuveiros. A casa já estava toda equipada com o encanamento, pronta para receber a água da rua, que ainda não estava disponível para aquele longínquo e esquecido bairro do extremo.
Chegou o tempo em que aquela região começou a ser lembrada. Tinha político que fazia campanha, prometia asfalto. Antes, os próprios moradores fizeram o calçamento da rua, com concreto mesmo, comprado por eles e cimentado por eles. Alguns vereadores eleitos e, talvez, por morarem nas redondezas, as coisas começaram a acontecer. À medida que o progresso ia chegando ao bairro, o poço ia perdendo a importância. As casas começaram a receber água encanada ao mesmo tempo em que o poço ia secando. Sua água já era escassa. Com a água da rua já era possível beber, cozinhar e lavar com muito mais facilidade. A vida era mais confortável, embora fosse um bairro esquecido que carecia ainda de serviços básicos. O conteúdo do poço servia agora apenas para a descarga, que ia para uma fossa construída no fundo do quintal.
O lixo ainda não era recolhido pela coleta do município.
Quando a bomba passou a trazer lama e o balde não alcançava mais a água, apenas barro, a solução dos moradores foi tapar o poço. Enchê-lo até a tampa e, então, isolá-lo. Inicialmente, entulhos de construção, posteriormente, lixos, orgânicos ou não.
Nesse período, os cuidados foram redobrados: “cuidado com o poço!”; “não brinquem perto do poço!” A bomba foi vendida. A estrutura para o balde foi retirada, a corda e o balde receberam novas atribuições.
As crianças voltaram a fazer como antes da casa possuir descarga, quando cavavam buracos no quintal de terra dos fundos para enterrar suas fezes. Agora, ao invés de usar a privada, faziam num saquinho plástico ou de papel e despejavam no poço. As reformas, construções que eram constantes na casa para abrigar toda a parentela que chegava de longe, e produziam quilos de entulhos, eram despejados também. Os restos de comida, lixos da cozinha, sujeiras dos cães, velhos brinquedos, roupas, segredos escusos, tudo era jogado ali, até que o poço atingiu sua capacidade.
A tampa, que antes era retirada para a fonte, a água que alimentava a família, agora servia para o hermético fechamento dos dejetos depositados. Os únicos que alcançaram o fundo do poço foram os restos de tudo que aquela própria água fornecera durante anos à família. A porcalhice humana depositada no buraco que tanto forneceu sustento. Aos poucos a família devolvia tudo o que recebera do poço durante anos.
grito do fundo do poço, de damásio marques
Damásio Marques é professor de Línguas e de Literatura. Filho de migrantes nordestinos, nasceu em São Paulo, trabalhou muitos anos no comércio, foi músico de bandas de rock da capital e atuou em rádio comunitária. Concluiu Mestrado e Doutorado pela PUC de São Paulo. Sua pesquisa em literatura brasileira contemporânea rendeu o livro Prosa Marginal e Literatura Underground: a linguagem de Mutarelli, publicado em 2022; além de vários artigos e capítulos de livros. Participou de coletivos como o Sarau Sobrenome Liberdade e o Arte na Vila. Traduziu a obra de Nivaldo Brito para o espanhol. Em 2025, publicou a antologia de contos Gangrena, pela Editora Patuá. Como professor, Damásio Marques atua na disseminação e estímulo da leitura literária, principalmente dos autores contemporâneos, marginais/periféricos.
George Melo é desenhista, artista plástico, ilustrador, professor e, eventualmente, aventura-se na literatura. Recebeu Menção Honrosa por seu trabalho na Escola Pan-americana de Artes. Ilustrou a antologia de contos Gangrena (Ed. Patuá, 2025) e publicou Três bocós e um sortudo, história em cordel, em 2025.


