Leia aqui um trecho de "memórias da velha utinga", de Elyssa Martins:
Carneirinhos
A maioria das pessoas que conhecia não gostavam de cemitério. Eu gostava muito, imaginava sobre cada história reunida ali. Poderia passar horas divagando, até dias vivendo em um. Era tudo muito fascinante. Minha curiosidade aguçava como em nenhum outro lugar. Quem teria sido essa menina? Espere… fazendo as contas ela… morreu com a minha idade? Chocante! Que mal terá lhe acometido? Esse aqui sei que é parente da fulana. Viveu quase 100 anos? Minha nossa!
A necrópole destinada ao pobre é caótica. O terreno íngreme, se chovia era intransitável. Uma tumba elegante, outra malfeita e aquela ali, quanto tempo que ninguém a via? Tudo ocupando o mesmo espaço e nem Newton explicaria.
Na minha família me achavam uma criança corajosa por não ter medo de defunto. O mistério pós morte nunca me angustiou. Todas as minhas perturbações sempre partiram de quem ainda se encontra aqui. Por que normalizamos tanto o fato de que homens fazem coisas ruins?
No início dos anos 2000, na TV aberta, era exibido o famigerado Linha Direta, um programa destinado a apresentar casos policiais não solucionados e a divulgar informações que ajudassem a encontrar os algozes. Certamente o responsável por desencadear as maiores crises de insônia na minha infância. Não importava o quão distante da minha realidade o crime tinha acontecido, eu sempre acreditava que o bandido poderia estar à espreita, bem ali, no nosso quintal.
No carnaval, havia a tradição dos bobos. Basicamente, pessoas mascaradas saiam nas ruas, visitando as casas, divertindo e fazendo gracinhas. Tinha uma ladeira, e no topo dela, a minha escola. Da nossa casa, meus avós me chamaram para ver a descida dos bobos nela pela primeira vez. A primeira e a última. Quando vi aquele monte de figuras extravagantes, com sua identidade oculta e comportamento peculiar se aproximando da nossa casa, eu congelei! Tive um piripaque igual ao Chaves.
Lembro de pensar nos fugitivos do programa policial, nas insinuações de que poderiam se encontrar em qualquer lugar com seus disfarces. Tive uma crise de choro e não houve santo que consolasse. Algum amigo da família, já não me recordo quem, tentava contornar revelando sua face. “Calma, sou eu. É de brincadeira. Dá água a ela.” Mas o estrago já havia sido feito. Lembro do frio na barriga e de me sentir enganada. De passar dias desconfiando das pessoas, até da minha sombra.
É engraçado como nossa percepção de mundo é tão equivocada quando criança. A maioria das impressões de cada experiência se dão muito mais através das reações dos nossos cuidadores que da nossa.
Uma vez, eu e minha irmã fomos ao cemitério com nossas mães, a ideia era acender velas, levar flores e realizar uma prece aos nossos entes queridos que lá repousavam. Quando chegamos, logo após uma longa caminhada por uma estrada de terra, muita poeira e pó de cana queimada, o portão estava trancado. Retornar não era uma opção, então nos foi sugerido que pulássemos o muro do cemitério e cumpríssemos com as intenções daquele dia. E lá fomos nós, duas meninas serelepes e destemidas. Naturalizando desde sempre o óbvio: um dia, todo mundo perde a vida.
memórias da velha utinga, de elyssa martins
Elyssa Martins é uma artista e escritora alagoana. Nascida em 1994, sua jornada criativa é profundamente influenciada pelas raízes de sua infância vivida no cenário único de Utinga, vilarejo adornado por uma reserva de mata atlântica.
Embora tenha iniciado cursos de Jornalismo e Letras em universidades federais, decidiu seguir seu próprio caminho nas artes visuais e na literatura, buscando uma expressão mais autêntica e pessoal em suas criações. Seu trabalho explora os desdobramentos das experiências na infância, sendo as fantasias, memórias e a experimentação sensorial as principais inspirações para suas obras.
Apaixonada por cinema, Elyssa encontra na sétima arte mais uma fonte de inspiração, em 2024, foi contemplada pela PNAB para desenvolver o projeto Jambo, uma produção cinematográfica infantojuvenil que reflete suas múltiplas camadas criativas.
Ela é autora de A Curiosidade Salvou os Ratos (Amazon KDP), além de coautora nas coletâneas Criando Nós (Editora Frutificando) e Memórias de Afeto (Lítero Editorial), com trabalhos publicados também em revistas digitais.
Sua trajetória artística inclui reconhecimentos, como a semifinal na IV Batalha Artística Golddenclick, onde destacou-se com as obras Oxum e Tesouro Pirata.
Elyssa Martins compartilha suas criações com o mundo e abraça a vulnerabilidade como parte essencial de seu processo artístico.