Leia aqui um trecho de "a memória das coisas e outros contos", de Pedro Freitas:
 
Agora ele era o centro de um mundo vazio. Sentia-se oco das presenças. Compreendeu nessa época que o amor quase sempre reinvidica um tempo passado, supostamente melhor. Suas juntas já estavam frouxas, e o algodão quase todo aparente pelos arranhados em sua superfície. Suas almofadas estavam naturalmente afundadas, por falta de enchimento. Foi também nessa época que passou a ser habitado por minúsculos insetos que, pouco a pouco, corroíam-lhe a estrutura.
Era fim de tarde quando alguns homens, uniformizados o cercaram, e não muito tempo depois, o jogaram no fundo de um furgão, onde estava escrito ENTULHO. A porta fechou-se e nenhuma fresta de luz entrava naquele comboio. Deveria ser o fim, pensara. Dirigia-se a um destino incerto, amontoado em meio a muitos outros móveis, quase todos defeituosos. Tornara-se um estorvo.
Cedo, pela manhã, foi descarregado. Chegava então à sua condição atual. No começo era difícil se acostumar aos odores fétidos ao seu redor. Passara a ser então um descanso provisório para os transeuntes e trabalhadores do lixão. Não era mais propriedade exclusiva de ninguém, e havia algumas vantagens nisso, em especial ver as transformações ao seu redor. Pessoas indo e vindo, novos contatos. Mas sentia falta dos cuidados que recebia no pequeno apartamento burguês. Nos finais de tarde, via as luzes das janelas se acenderem em minúsculos cubículos no horizonte, e não compreendia como podia viver sem um piso sob os pés.