Leia aqui um poema de "a verdade no abismo", de Marília Pessoa:
Quase uma hora depois, o som alto do tapa ecoou pela casa inteira. Primeiro o som dos dedos dele firmes e ágeis sob a bochecha de Eugênia e, em seguida, o barulho do corpo dela caindo no chão. Era como se ela estivesse do lado de fora de si, apenas observando tudo. Uma mera espectadora que não conseguia nem sentir uma dor sequer, já que estava anestesiada pelas emoções. Ela não tinha mais lágrimas para derramar. Dante não era mais o mesmo homem que a tirou da floresta, era desprezível, nojento. Ela se negou a perceber isso por muito tempo porque ainda o amava. Ele foi capaz de a machucar de todas as formas porque ela não seguia mais o roteiro da sua cabeça.
A mulher não conseguia levantar o rosto para encará-lo. Ela havia cometido um erro idiota que poderia custar a liberdade de ambos. Uma simples distração, um detalhe ofuscado por todas as outras coisas que já eram difíceis demais de lidar. Mas é claro que Dante não deixaria barato.
– Onde você estava com a cabeça para esquecer a droga do seu carro lá? – gritou mais uma vez. Sua voz não estava mais tão distante. Eugênia estava começando a recobrar a consciência. Já estava sentindo o ardor no rosto, que parecia ainda pior por causa da sensação de humilhação e culpa.
Não conseguia fazer um movimento sequer. Permaneceu no chão do quarto, com o resto da maquiagem borrada, o cabelo desgrenhado, descalça e com o vestido curto se amassando. Ainda estava usando a bendita roupa e o cheiro daquela noite estava impregnado na sua pele.
– Desculpa, Dante, eu esqueci totalmente, só conseguia pensar em sair dali com você... – respondeu com a voz embargada, como um animal arrependido. Ele a pegou pelo braço e a fez ficar de pé.
O carro de Eugênia foi esquecido perto do clube quando saíram às pressas. Ela não lembrou dele nem por um segundo quando correram pela mata e subiram ao barco para voltar. Ele ainda deveria estar lá, estacionado nos fundos, à vista de qualquer um. Seria fácil descobrir de quem era e os relacionar a qualquer coisa. Eles não queriam ter dores de cabeça com a polícia, mas Eugênia só se lembrou dele quando estavam em casa. Dante tinha acabado de sair do banho e ela estava retirando a maquiagem quando a memória do veículo parado veio à cabeça. Quando ela avisou da falha, ele foi tomado pela raiva e ela pelo medo.
a verdade no abismo, de marília pessoa
Marília Pessoa é pernambucana e escreve desde a infância, quando encontrou nos livros seu principal refúgio. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco, dedica-se à escrita de romances e contos que transitam entre o mistério, o afeto e os labirintos da mente. Além das obras literárias, Marília é jornalista, publica reportagens em portais de notícias na internet e mantém uma newsletter autoral.

