Leia aqui um trecho de "(ab)sinto", de Ana Cândida Nunes Carvalho:
Todos os dias, numa certa hora, ela fica observando uns pássaros enfrentando as cercas elétricas do muro da sua casa. Agora, só agora, anuncia, em terceira pessoa, que sente um pouco menos que ontem. E continua…
desinteressante,
desbrava vias de mão única
e permanece perdida
o ar, revolto,
resolveu atravessar
sua carcaça rasa
e deixar-te afogar-se
Tão desinteressantemente ela transita, silente, tropeçando entre palavras não ditas e olhares obtusos, desconstruídos diariamente. Seu sorriso, entre dentes, engasga e provoca um regurgitar frouxo, tocando a superfície rasa que a carne, já em estado de putrefação, tentou preencher inutilmente. Jamais repetiria tal refeição, certamente diria. A materialidade, aqui, é um embuste malfadado ao ocaso. Talvez lateje o desejo entre mastigadas.
mastigando em vão
frases ditas sem seu próprio consentimento
Um gesto tresloucado de mãos tenta afastar o ar que insiste em acalentar as reentrâncias do seu nariz. Brada alguns impropérios exagerados, nesse momento. Ela apenas não está acostumada com tamanha leveza, e o costume necessita de uma boa dose de ignorância para ser vivenciado sem dramas.
apenas respira
uma boa dose de ignorância
para existir, sem dramas
romances:
a gaveta, provavelmente,
está grata
Ela escreveu alguns romances de gaveta que provavelmente jamais necessitarão de uma leitura vasta; e leitura rasa pode transformar suas palavras em nada. Ela conhece bem o nada: aquilo que lateja pela ausência de um nome e nenhum verbo provocaria o agir; aquilo que soluça, paradoxalmente, para dentro, num espasmo que confunde o avesso de tudo, construído na mente, com a terça parte, apenas, de uma consciência de si; algo tão ínfimo, já se afirmando como identidade plena! (risos). Não passando, contudo, de um adorno em preto e branco, lutando para encontrar seus tons de cinza. E as cinzas voaram do cinzeiro sem que ninguém notasse.
alcançar o céu,
no topo da roda gigante
esticando longe
o braço que não se sustenta
Nos pensamentos mais intensos, ela se imagina tentando alcançar o céu, esticando o braço ao chegar no topo da roda gigante, sentada numa daquelas cadeiras desconfortáveis que embrulham o estômago com o ininterrupto movimento. Sua existência simplória não é nada além de um inescrupuloso arroto reprimido satisfatoriamente entre as festas de família a que ela nunca mais foi convidada.
(ab)sinto, de ana cândida nunes carvalho
Ana Cândida Nunes Carvalho é teresinense. Mulher autista, fotógrafa artística, formada em Psicologia e mestre em Filosofia, trabalha na Associação de Amigos dos Autistas do Piauí. Colecionadora de cabeças de boneca e outras preciosidades pouco usuais. Sonhadora incorrigível, prefere os grandes voos com os pés bem presos ao chão. Atenta às engrenagens da trama do cotidiano, mas gosta mesmo é da desconstrução de fados, enquanto escava abismos criados por si, cotidianamente. Apegada à rotina, incrementada com pensamentos mirabolantes, e às máscaras cativas que não destroem a verdadeira face, permanece presa às horas contadas, mas cultiva silenciosos gritos de liberdade. Escreve com a luz e com as palavras, para desatar os nós da alma.