Leia aqui um trecho de "amor e vertigem", de Brida Cezar:
Escavar o passado é tarefa árdua e dolorosa. Geralmente encontramos uma camada de fungos e líquens depositada sobre as nossas recordações mais preciosas – as imagens acham-se desbotadas e os ruídos abafados pelo tempo implacável do esquecimento. Por outro lado, as manchas e os relevos de nossas dores persistem como uma fruta que não para nunca de apodrecer em nosso quintal: não há como se desvencilhar das marcas que os afetos produziram em nossa carne. Eu consegui revisitar a minha história quando pisei em terra firme e me senti segura para fazê-lo: isto aconteceu precisamente em fevereiro de 2023 quando decidi me mudar para Paranapiacaba. Na companhia da neblina, dos pássaros e das locomotivas eu escrevi cada verso e vasculhei cada cômodo empoeirado do meu coração. As portas ficaram fechadas durante décadas porque o sofrimento dos desencontros e das despedidas foi quase insuportável em alguns momentos: precisei me afastar para suportar os descaminhos da vida – minha vó saindo de casa, minha mãe beirando seus próprios abismos, minha melhor amiga me dizendo adeus, meu primeiro amor desistindo de nós e minha última e mais repentina paixão se dissipando pelos ares. Eu nunca evitei a dor, mas demorei para aprender a esculpi-la sem me ferir e sem sangrar até morrer – às vezes desisti pois percebi que o meu limite estava próximo e escolhi continuar lutando e traçando os desvios que eram possíveis. Então certo dia acordei e decidi cicatrizar as feridas escrevendo – me cuidar e me curar de tudo que passei e de tudo que não experimentei em função do meu destino – uma hora resolvi aceitá-lo e afirmá-lo apesar de suas rupturas, quedas e desmoronamentos. Amar é um exercício de acolhimento em relação ao trágico que nos habita – eis a viagem que inicia aqui e que não termina na última página deste livro.
amor e vertigem, de brida cezar
Brida Cezar nasceu no interior do estado do Rio Grande do Sul em 1992 e desde cedo se interessou pelos anacronismos das paisagens, foi assim que se debruçou sobre os antigos e remanescentes traçados da ferrovia em nosso país. Durante a sua pesquisa de doutorado em psicologia social e institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul conheceu Paranapiacaba, antigo vilarejo ferroviário localizado no alto da serra do mar em São Paulo, onde vive atualmente em meio ao patrimônio e a neblina com os seus livros e com os seus cachorros Aura e Cambuci.