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Leia aqui um trecho de "apóstrofo", de Venício Gabriel P. da Silva:

 

De todos os dias desde que afastamos as vírgulas — e você foi morar na casa da sua mãe, ironicamente do outro lado da rua —  hoje foi o que mais me deu vontade de me vingar. Meu chá com bolachas de mel e gotículas de chocolate, de repente, tinha o gosto daquela sua bomba vegana de couve, alface e sei lá mais o quê. Senti um impulso tão absurdo de dar o troco que fui falar com minha ex-sogra. Ela, tão gentil que é, me disse que, todas as noites, antes de dormir, você está tomando chá com bolachas de mel e gotículas de chocolate. Pensei, então, que até para ser odiado você consegue ser mais doce.

 

Pior que isso é te ver quase todo domingo, só para devolver as relíquias inúteis que deixou,  a camisa ainda úmida do suor das peladas de segunda, uma meia com o pó de um chão que não era meu, um livro de autoajuda manchado de gordura e, finalmente, uma cueca furada, testemunha fiel do seu descuido. No começo, pensei que seria capaz de ignorar. Que bastava atravessar a rua pelo outro quarteirão e nunca mais ouvir sua voz ou sentir seus abraços. Mas você tem esse talento de se embeber nas coisas: no supermercado, no bar que eu frequentava antes de te conhecer, até na prateleira de temperos da minha cozinha. Outro dia, encontrei um pote de cúrcuma que juro nunca ter comprado. Ainda tinha uma etiqueta torta com sua letra, escrita para que eu não a confundisse com açafrão.  É como se agora eu vivesse antes mesmo da vida, como se meu corpo fosse inútil demais para caber na nossa cama ou insuficiente para servir de escudo nesta guerra que travo por dentro, em que cada explosão é silenciosa o bastante para que ninguém perceba, mas alta o suficiente para me tirar o sono.

 

Já nem abro a janela. Afinal, de que vale a vista se você está com outra pessoa no cinema? De nada. Ainda me custa pensar que, em tão pouco tempo, você já decidiu onde ficar e não descola do meu pensamento. Feito um ensolarado cupido, você me cegou o peito. As madrugadas guardam meu martírio e as manhãs carregam o cheiro do que fomos. Sabem bem como ainda beijo o seu canto da toalha. Agarrada a um travesseiro, imagino nós dois juntos e, nisso, o impossível é só um erro de prefixo: acidente do destino, acaso temporário, um pesadelo maldito, quem sabe?

apóstrofo, de venício gabriel p. da silva

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  • Nascido em 2003, Venício é um escritor pernambucano, natural de Salgueiro-PE, mas criado e formado em Parnamirim-PE, onde reside com sua família. Acredita que a educação é uma poderosa ferramenta de transformação social e sonha com o dia em que os professores terão melhores condições de trabalho. Atualmente, estuda Licenciatura em Ciências Biológicas e, em 2023, conquistou a medalha de ouro na Olimpíada do Oceano com seu poema “Sangue Azul”. É autor de dois livros: o de poesia “Como Escreve Um Ansioso? – Textos Caóticos” e o romance “As Apostas de Nós Seis”.

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