Leia aqui um trecho de "aquilo que não nos contaram", de Luciana Brandão:
HOMENS
Eu preciso. Preciso da tua lâmina afiada e do teu cabo. Como o morto de sede precisa da água, eu preciso de ti. Sentir entre meus dedos a tua superfície fresca, as ranhuras microscópicas do teu metal em contato com os poros da minha pele. Preciso acariciar os entalhes da tua madeira rígida, segurar com força, apertado, fechar na palma da minha mão e sentir o encaixe perfeito da tua empunhadura com cada um dos meus calos. Fecho os olhos e respiro fundo. A única capaz de entender minha brutalidade. Sem questionar, sem julgar, sem temer. Apenas testemunha do nosso passado, presente e futuro. O antes, o agora e o depois e nós dois dançando juntos pela noite, sucessão de gozos intermináveis. Eu te olho e contigo não é necessário que os pensamentos se ponham em palavras — só mais uma vez? e antes que a interrogação se coloque você reluz trêmula agarrada em mim, sim, sim, só mais uma, só mais dessa vez, por que não, afinal, o que está nos impedindo? Uma pergunta como resposta para outra pergunta. Gosto, gosto de ti assim e dessa maneira que a gente se comunica, idioma secreto cultivado em códigos imaginários entre dois loucos. Meu grande sacrifício, minha cruz, minha sina: para que tu me uses, é que eu existo. A tragédia fora dos palcos e tu: minha testemunha, cúmplice e amante; atriz principal dessa peça a que chamam de minha vida, diretora e roteirista, ideia argumento trama. A ti, razão da minha existência, a ti dedico cada passo por entre as sarjetas, a ti musa deusa rainha hipérbole dedico aquilo que ainda tenho de mais precioso e sagrado — o tempo.
Ao dobrar na esquina da Farrapos, o homem vestindo um terno cinza avista uma mulher de pé, parada no ponto de ônibus, segurando uma criança de colo. Ele se aproxima da mulher e da criança. Retira de dentro do bolso uma faca e, em um golpe certeiro, rasga a garganta da mulher. Agarrada ao bebê, a mulher cai de joelhos. O homem retira o bebê dos braços da mulher e olha para a faca com a lâmina coberta pelo sangue vermelho.
Só mais uma, só dessa vez.
aquilo que não nos contaram, de luciana brandão
Luciana Brandão nasceu em 1993, em Porto Alegre. É formada em Relações Internacionais e Mestra em Sociologia. Lançou seu primeiro livro de forma independente em 2016 e, desde então, já publicou diversas obras, transitando entre os diferentes gêneros, como poesia, literatura infantil e contos. Seu livro Das coisas que escrevi nas margens do livro que você me deu (2018), foi finalista do Prêmio Minuano de Literatura. Atualmente cursa o mestrado em Escrita Criativa (PUCRS) e está escrevendo seu primeiro romance. Compartilha suas escritas cotidianamente como @lcbrandao.

