Leia aqui um trecho de "brotoejas", de Felipe Guimarães:
NOTAS FUNERAIS
Era o sexto aniversário da sombra de Pedro na vida da família Alves.
Como de costume, os filhos acordavam cedo e cercavam a mesa em um tom fúnebre. Geralda arrumava os cachos, pintava o rosto e colocava o mesmo vestido de seda escuro, com um trevoso bordado floral em volta do pescoço, o que destacava o rosto pálido naquela baila funeral. Aproximando-se da mesa com cafezinho e algumas torradas, seus filhos permaneciam em um silêncio cortante, aguardando ansiosamente pela primeira alimentação do dia, mas tentando disfarçar qualquer esboço de alegria naquela manhã. Mais um aniversário para rememorar a morte súbita do pai.
Após a oração de agradecimento e lamento feita pelo filho mais velho, a família se pôs a saborear a comida fria e seca que ingeriram nos últimos anos. Com os olhos fixos na mesa e uma postura ereta, Geralda impunha uma severidade que não poderia ser quebrada por qualquer fala aleatória dos meninos. Entretanto, o caçula, depois de ensaiar a semana toda com o espelho do banheiro, acabou soltando a curta frase que desequilibrou a atitude solene de Geralda:
– Por que fazer isso todo ano, se o papai não vai mais voltar, mãe?
O garoto mal subira os olhos para olhar a mãe e logo foi surpreendido com um tapa. O silêncio do ambiente foi interrompido por soluços de choro. Percebendo que a mãe poderia reagir de forma agressiva novamente, o menino mais velho pediu licença e retirou-se com o irmão para o banheiro do andar de cima.
– Tá ficando doido? Não repete mais uma coisa dessas! Não hoje! – o garoto repreendeu limpando o rosto marcado do irmão. – Calma, não precisa mais chorar. Vamos descer e terminar de comer, tá bom? Só fica quieto, por favor.
Ao descerem as escadas, notaram que a mãe não estava mais à mesa. Um ar musical imediatamente inundou a casa. Geralda estava sentada de frente ao piano antigo de seu marido, dedilhando alguma coisa triste. Os garotos foram em direção à mesa tentar terminar de comer alguma coisa. As notas soltas do piano começaram, aos poucos, a tornar-se melodia encorpada e melancólica. E da garganta da mãe enlutada, tais notas tomaram palavras:
A canção ecoa com notas funerais
A morte é celebrada
Aplausos pedem mais!
Lágrimas cortadas
Luto enegrecido
Começa o cortejo
Alguém estará perdido...
A canção ecoa com notas funerais...
Os meninos evitavam ver a mãe, mas sabiam muito bem como ela estava diante do piano. Já haviam vivido essa cena antes. Penteado desfeito, uma garrafa de vinho aberta no chão, um rastro sujo quebrando a maquiagem reluzente no rosto, olhar vazio para a parede na qual um quadro do falecido marido se encontrava, timbre bonito, voz embargada. Era o ápice daquele repetido cortejo.
Levantem, ó portas, vossas cabeças para a morte entrar
Levantem, ó portas, vossas cabeças para a morte entrar
Levantem, ó portas, vossas cabeças pa-ra a mor-te en-trar...
Mesa vazia. Os filhos já estavam no quarto, cobertos com o lençol, agarrados um no outro e tremendo de medo. O menino mais novo tentava controlar o choro, e seu irmão tampava sua boca para abafar qualquer ruído.
O piano parou. Somente correntes de ar avultavam na casa. Geralda se direcionou ao andar de cima e, no meio do corredor, começou a ouvir portas e janelas abrindo e fechando freneticamente. Ela pegou a garrafa de vinho e jogou contra a parede na tentativa de acertar alguém que não podia ser visto.
– Eu te odeio! – berrou antes de ser puxada em direção à escadaria.
Os garotos choravam abraçados. Alguns quadros do quarto tinham caído no chão, e outros objetos foram derrubados em cima da cama. Com o grito da mãe, o caçula também se pôs a berrar desesperadamente. Levantou-se da cama, de súbito, e foi até o corredor para encontrar sua mãe. Seu irmão paralisou por alguns segundos, mas logo correu atrás do menino.
No corredor, cacos de vidro e alguns objetos espalhados cobriam o piso lustroso da casa. Já perto da escada, perceberam que o barulho de antes havia cessado. Onde estava a mãe? Os meninos seguraram as mãos quando o piano voltou a soar. Era a mesma melodia cantada por Geralda. Correndo rapidamente para baixo, eles se depararam com um corpo contorcido no fim dos degraus. Quem tocava e cantava as notas não era Geralda.
brotoejas, de felipe guimarães
Felipe é natural de Ananindeua, região metropolitana de Belém (Pará). Em suas criações, costuma mesclar elementos de terror, problemas sociais e dramas humanos. É professor de língua portuguesa e literatura (SEDUC/PA), doutor em estudos linguísticos (UFPA) e coordenador de um coletivo de jovens escritoras e escritores, o GRUPO HIATO, que atua desde 2020. Tem como foco de trabalho a escrita literária e a autopublicação independente e artesanal. Já publicou contos e poemas em coletâneas e antologias. "BROTOEJAS" é seu primeiro livro solo.

