Leia aqui um trecho de "valei-me! contos insólitos", de Luciano Duarte:
“Acode, minha gente!”
Aninha mal podia ouvir sua avó Lúcia gritando por ajuda. Em sua mente, só conseguia enxergar a imagem do velho dando um pontapé em Foguinho. Enquanto isso, as chamas continuavam tomando conta dos caibros do quarto dos avós. Se não estivesse tão preocupada com o bichano, a garota teria tido tempo pra admirar a combinação de vermelho, amarelo e laranja que o fogo criava e que ia subindo pelas paredes.
Mais tarde, diriam que o fogaréu teria começado por conta das velas que a avó costumava acender quase que todas as noites pra Nossa Senhora do Ó. As velas do altar teriam caído por cima das cortinas amarelas de linho e iniciado o incêndio.
Naquele momento, bem antes de as chamas cessarem, boa parte dos moradores das redondezas tentava ajudar a Dona Lúcia a salvar a estrutura do incêndio, usando baldes, bacias, panelas e tudo mais que podiam carregar até a levada mais próxima e encher com água.
A garota ignorava tudo aquilo.
Ignorava os gritos da avó e dos vizinhos; ignorava os latidos dos cachorros que tinham acompanhado seus donos até ali; ignorava o choro do bebê da Galega, que era só uns seis anos mais velha que ela. Por um tempo, ignorou até mesmo o corpo estirado a alguns passos de onde estava.
“O Foguinho já voltou, vó?”
“Que Foguinho, Sebastiana! Isso é hora de pensar naquele gato dos infernos?!”
Aninha não queria saber da casa. Não se importava com aquela construção antiga e feia, construída com blocos vermelhos e barro da beira do rio quando a avó ainda era quase da sua idade. Queria saber do Foguinho. O gato sempre a seguia pra todos os lados; escondia-se atrás da cômoda de madeira e pulava em suas pernas quando ela passava. Desde que chegara, Foguinho era a única coisa que a fazia sorrir.
valei-me! contos insólitos, de luciano duarte
Alagoano longe de casa, Luciano Duarte tem 27 anos e atualmente reside em Macapá-AP, onde é professor do curso de Letras – Inglês da Universidade do Estado do Amapá (Ueap). É autor do livro de poesias Os grilos que do oitão me chamam (Litteralux, 2024) e do livro de ensaios Zoologias reais e fantásticas: o animal e o biopolítico em Clarice Lispector e em Heliônia Ceres (Caravana, 2024).