Leia aqui um trecho de "constelação", de Stella de Bastos Mendonça:
Já passava da hora de dormir, mas a menina não conseguia pegar no sono. Revirava-se na cama, atenta à conversa dos adultos lá fora. Os irmãos já dormiam profundamente: o do meio, de três anos, na cama ao lado, e o bebê, de apenas um ano, no berço, com o bracinho pendendo para fora da grade.
A avó entrou no quarto para verificar o bebê, e a menina se sentou na cama.
— Não consigo dormir, vovó! — confessou Esterzinha.
— Para dormir, você precisa ficar deitada, minha querida. Feche os olhinhos. — Malu respondeu com uma voz doce, embora o cansaço e a impaciência começassem a transparecer.
— Posso falar com a mamãe?
— Sua mãe está tentando descansar. Foi um dia difícil. Descanse também.
Contrariada, Ester puxou as cobertas e deitou-se, amuada. Desde que Lúcia, sua mãe, fora ao hospital, as noites haviam se tornado longas e solitárias. Naquela manhã, o tão aguardado retorno aconteceu. Ester mal pôde conter a ansiedade ao ver o carro da tia Ana se aproximar. Correu para abraçar a mãe, mas foi interrompida pelos gritos dos adultos:
— Cuidado! Ela está com sonda!
A palavra ecoou em sua mente: "sonda". Mais tarde, alguém explicou que era um tubo usado para drenar líquidos após a cirurgia, aliviando a dor. Ester compreendia pouco, mas sabia que tudo o que desejava era que a mãe não sofresse.
A transformação física de Lúcia era chocante. Estava sem cabelo, magra e caminhava com dificuldade. O irmão do meio reagira com medo, recusando-se a abraçá-la. Ester tentou persuadi-lo, mas ele fugiu, escondendo-se no quarto. A lembrança deixou a menina triste.
Sentiu, então, que precisava abraçar a mãe antes de dormir, custasse o que custasse. Escorregou para fora da cama e caminhou pelo corredor escuro, vencendo o medo das sombras. O quarto da mãe estava logo ali. Ester abriu a porta com cuidado e entrou, trancando-a atrás de si.
Lúcia estava chorando.
— Por que você está chorando, mamãe? — perguntou Ester, antes que a mãe pudesse repreendê-la por estar fora da cama.
Lúcia secou rapidamente as lágrimas e forçou um sorriso.
— Estou só nervosa, meu amor. Não consigo parar de pensar no que vem pela frente.
— Quer ver televisão?
— Não…
— Quer ler um livro?
— Seria bom, mas não consigo segurá-lo.
— Por causa da sonda?
— Sim.
— Eu posso ver?
Lúcia hesitou, mas o olhar curioso e sincero da filha a convenceu.
— Você quer mesmo ver a sonda?
Ester assentiu timidamente.
Com delicadeza, Lúcia segurou a mão da filha e ergueu o pijama, revelando a cicatriz da mastectomia e o tubo. A menina se assustou, mas manteve-se firme. Não queria que a mãe pensasse que estava feia ou monstruosa, como dissera, magoada, ao lembrar-se do irmão fugindo dela.
— Vai passar, mamãe. Você vai ficar boa logo.
Lúcia ajeitou o pijama e fitou o teto, deixando uma lágrima escorrer. Ester, observando, sentiu o coração apertar. Desejava aliviar todo o sofrimento da mãe. Foi então que uma ideia lhe ocorreu.
Pegou um livro na cabeceira e o abriu em uma página qualquer. Começou a ler, hesitante:
— Ha… ha-vi…a no al-to da mon… mon-ta-nha três pe-que-nas ár-vo-res…
Lúcia, surpresa, desviou o olhar das sombras no teto para a filha. Não a interrompeu. Ester estava sendo alfabetizada e enfrentava dificuldades. “Ela tem TDAH e dislexia. Vai ter problemas na escola por toda a vida”, dissera a psicóloga escolar certa vez.
Antes de ir para o hospital, Lúcia lia para Ester todas as noites. A Fábula das Três Árvores era seu livro preferido, mas faltara terminar a última história.
— Quando você aprendeu a ler assim? — perguntou a mãe, emocionada.
— Quando você foi para o hospital, mamãe. Eu queria saber o final da história. Você está brava comigo?
— Brava? Estou muito orgulhosa!
As duas se olharam, sorrindo. Lúcia apertou a mão da filha e, por um instante, sentiu-se mais forte. Ester, sentindo-se vitoriosa, continuou a leitura, decidida a terminar o livro para a mãe.
constelação, de stella bastos de mendonça
Stella Bastos de Mendonça é escritora e professora de inglês. Apaixonada por histórias, dedica-se a contar narrativas que exploram as relações humanas e as experiências femininas. Seu trabalho reflete sua vivência e sensibilidade, abordando temas como memória, identidade e pertencimento. Além da escrita, tem experiência no ensino de idiomas e acredita no poder transformador da educação. "Constelação" é um de seus projetos literários mais significativos, trazendo à tona as vozes de mulheres brasileiras por meio de contos que atravessam gerações.