Leia aqui um poema de "do avesso e outras crônicas", de Tiêgo R. Alencar:
Desde muito pequeno, sempre fui obcecado por dicionários. Na primeira série, ganhei um dicionário da escola e foi um sonho realizado. Definições com imagens, verbetes detalhados, exemplos de uso... Eu não sossegava enquanto não colocava o dicionário no colo e começava a ler. Sim, a ler. Como se aquelas palavras soltas e explicadas me contassem a mais interessante das histórias. Mas, na verdade, o que mais me interessava ali era o sentido. Tudo fazia sentido. As palavras soltas, as letras soltas, as fotografias, a diagramação da página, a capa, a contracapa. Dicionários me ensinaram muito sobre sentidos.
E foi em meio a milhares de verbetes que eu descobri o sentido de “literalmente”: de modo literal, à letra; exatamente, expressamente, de forma total; absolutamente. Volta e meia era essa a expressão que eu lia nos livros. “Ele estava literalmente pisando em ovos” – e a personagem caminhava desastradamente em uma granja enquanto cuidava de galinhas; “ela era literalmente poliglota” – e a personagem falava cinco línguas além do português. E por aí vai a infinidade de usos adequados deste advérbio escorregadio e non grato.
As aulas de ciências aconteciam sempre nos primeiros horários de terça-feira. Àquela época, eu ainda estudava pela manhã e o fato de precisar acordar cedo ainda me era o fim do mundo. Mau humor, raiva, indignação. Tudo se centrava em minha cabeça enquanto eu sentava na primeira fileira à direita, esperando para me esforçar o mínimo e entender algo do que a professora diria.
Naquele dia, em especial, eu estava bem chateado. Eu só precisava de um empurrãozinho para estourar. E um pré-adolescente emburrado dificilmente seria compreendido por ter caído no banheiro antes de vir à aula e por ter derramado café na barra da calça jeans. Para completar, ainda tinha ciências. Eu precisaria de muita coragem para encarar aquela tormenta.
do avesso (e outras crônicas), de tiêgo r. alencar
Tiêgo Ramon dos Santos Alencar é amapaense, nascido no meio do mundo em 20 de junho de 1994 e atualmente é professor de Língua Portuguesa na Universidade do Estado do Amapá (UEAP). Tem graduação em Letras/Francês pela Universidade Federal do Amapá e mestrado em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. Desde muito pequeno, sempre foi obcecado por leitura – e até hoje se diverte em busca dos sentidos que a literatura proporciona. Além da docência, tem um apreço considerável por açaí e por pedaladas. Do Avesso é seu primeiro livro de crônicas.
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