Leia aqui um trecho de "(escre)vendo a vida", de Amanda Kristensen:
Descobri que papai era Papai Noel no Natal de 1999: vestia-se de vermelho e fingia uma barba maior que meu cabelo para nos entregar presentes. Ele chegava sempre depois da meia-noite, depois dos bicos como Papai Noel na Matriz, e então, aproveitava a fantasia.
Todas as vezes em que os adultos começavam a fingir para alegrar as crianças e acabavam encantando suas próprias vidas, eu sabia que era aniversário de Jesus.
Em casa, tínhamos uma árvore de Natal do tamanho da Zefa, minha galinha de estimação. Bom, a Zefa era pequena, a árvore também: tudo em casa era assim meio pequeno, mesmo a família: éramos eu, papai e mamãe.
O Natal era minha oportunidade de me sentir ainda menor: menos importante, menos notada, menos filha única. Naquele mês de dezembro, a um passo de completar minha primeira década, já esperava os primos Luís e João.
Às vezes, olhava para Luís e percebia que éramos os mais parecidos; pensava em como seria ter uma irmã. Será que era como ser outra pessoa, sem deixar de ser eu mesma?
Mamãe sempre dizia que eu não teria irmãos, que não éramos ricos para isso!
Depois do aniversário de Jesus, era a minha vez de apagar velinhas. Fiz um pedido: naquele ano de 2000, eu queria ser muito, muito rica! Assim, eu poderia ter uma irmã e descobrir como era ser outra sem deixar de ser eu.
Em 2000, papai e mamãe se separaram.
Eu nunca tive uma irmã.
Não ficamos ricos das coisas que o dinheiro compra.
25 anos depois, amanhã é Natal.
Sei que fui atendida; talvez não como eu quisesse que fosse, mas como pôde ser.
Mamãe dizia que Jesus escreve certo por linhas tortas. Eu prefiro as retas, que minha letra já não é tão boa.
A cada nova linha, a cada nova história, descubro como é ser outra sem deixar de ser eu. Nunca me esqueci, nunca podemos nos esquecer.
(escre)vendo a vida, de amanda kristensen
Amanda Kristensen é doutora em Letras (2022) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Atua como docente na área de Estudos Literários, na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS). Faz da escrita meios de inscrever-se no mundo a partir do conhecer e do fazer-se conhecer. É autora das obras de contos “Entre-Terras” (2020) e “Pelas Frestas” (2022) – publicadas pela Editora Patuá – bem como do livro infantojuvenil “Os segredos de vó Trudes” (2022), publicado pela Editora Caravana. Assina diversos textos selecionados e premiados em Antologias, Blogs e Revistas Literárias. Em 2023, passou a integrar o coletivo literário As Contistas e, em fins de 2024, teve seu primeiro livro de poesias “(in)significâncias” publicado pela Editora Taup, de Curitiba.


