Leia aqui um trecho de "memorabilia de esquecimentos", de Fabricio Ferreira:
A chave mágica
Aquela não era uma simples chave de fenda. Era um artefato mágico, como aqueles que o Mestre dos Magos deu a cada um dos garotos perdidos em Caverna do Dragão, meu desenho favorito. Como toda chave mágica, a do meu pai abria as portas de um mundo fantástico, não o reino das palavras de Drummond, mas o mundo interior de todas as engenhocas que existiam: o ferro de passar roupa, o ventilador, brinquedos brilhantes, e até mesmo a mais poderosa de todas: a televisão. Meu pai tinha o poder de conseguir consertar qualquer brinquedo quebrado e qualquer coisa que vizinhos ou parentes levavam para ele, consertos que ele nem cobrava, mas que sempre pedia para mim, que observava curioso, sair de perto, pois era perigoso. Eu ficava de longe, certo de que não estava pronto para ver os segredos do vasto mundo no interior das coisas. Admirava sua seriedade na tarefa, sua dedicação e responsabilidade. E, no fim, quando terminava, satisfeito, guardava com cuidado a ferramenta em sua caixa e colocava em cima do armário.
Por isso, quando eu vi a chave de fenda do meu pai, esquecida por alguém na mesa da cozinha, não hesitei e peguei em minhas mãos. Apertei seu cabo de plástico, olhei sua haste de aço brilhando à luz da tarde. Eu tinha o poder. O que faria com ele?
Fui em direção à sala; era lá, no principal cômodo da casa que ficavam as máquinas mais legais. Embainhei a ferramenta na cintura da bermuda, tal qual espada. Já na sala, olhei para a Televisão. Tinha sido desligada há poucos minutos, quando toquei em sua testa de vidro estava ainda quente. Então voltei meus olhos para o ventilador, com seu perfeito movimento de vai e vem soltando vento pela sala; de onde vinha aquele vento? E como ele sabia exatamente ir e voltar sempre no ponto milimetricamente certo? Deviam ser os pequenos seres que habitavam ali dentro, claro. Pequeniníssimos seres que habitavam essas máquinas, seres mágicos que obtinham energia para viver e em troca tinham que fazer essas coisas funcionarem. No ventilador, deveriam habitar a base, imaginava uma verdadeira civilização ali dentro, micro-operários, protegidos pelo plástico duro que os escondiam de crianças que não estavam preparadas para essa magia profunda. Mas, com a chave de fenda, eu teria a oportunidade de finalmente vê-los.
Quando me aproximei do ventilador, algo ainda mais fascinante me chamou a atenção: o telefone. Eu já tinha dedicado horas da minha breve existência a pensar como a nossa voz era levada por fios pequenos até outros telefones, onde outras pessoas do outro lado da cidade nos ouviam? De certo havia um trem minúsculo naqueles fios que, veloz como o som, transportava as palavras ao destinatário certo.
Era isso: eu ia abrir o telefone.
Não foi difícil. Com a chave de fenda, fui rodando cada parafuso, as mãos tremendo. Quando retirei a parte de cima da carcaça, qual a minha decepção ao ver que não havia nada além de uma placa com mais fios enrolados e mais parafusos? Desmontei parafusos e peças, procurando a magia. Corri e peguei uma tesoura pequena sem pontas do meu material escolar e cortei os fios para ver o que tinha dentro. Deu pra ver o interior dos fios: cobre. E só. Onde estariam os micro-operários? E os trens que estacionavam ali para fazer o carregamento de palavras até outra estação, outro telefone? De qualquer forma, eu sabia que estava chegando a hora de mamãe chegar. Eu precisava ser rápido.
Tentei montar de novo, mas não conseguia. As peças não voltavam ao lugar como num passe de mágica. Os parafusos, de diferentes tamanhos, não entravam, as peças não encaixavam de volta, a chave de fenda parecia ter perdido o seu poder. Aflito, tentei fechar de qualquer jeito, algumas peças ficaram de fora, parafusos pontudos se recusavam a rodar para encaixar. Só me restou executar o protocolo exigido em momentos como esse: corri para me esconder, deixando o telefone ali, todo escangalhado.
Depois que fugi, lembrei da chave: esqueci-a junto ao que restou do telefone. Melhor assim: eu não era digno de usá-la.
O meu esconderijo nessas horas era embaixo do tanque de madeira, no quintal, que eu gostava porque era tão pequeno que permitia me encaixar perfeitamente. Por pouco tempo, pois logo eu cresceria e perceberia o mundo nada mágico no qual me encaixaria cada vez menos.
memorabilia de esquecimentos, de fabricio ferreira
Fabrício Ferreira é escritor nascido e criado no bairro da Pedreira, em Belém do Pará. Professor universitário, mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará, dedica sua produção à literatura marcada pelo imaginário amazônico, escrevendo contos de terror, crônicas e poesia inspirados no cotidiano da periferia.
Sua trajetória inclui participação em diversas antologias de poesia, crônicas e contos de terror. Participou das seguintes antologias: “Terror na Amazônia”, de contos de terror, da Editora Pará.Grafo, em 2020; Antologias “Entre Caveiras, Lupas e Sótãos: contos de terror” e “Amazônia”, do Selo Off Flip, em 2023; Antologia “Poesia Brasileira” da Editora Arte da Palavra, em 2022; e do IX Anuário da Poesia Paraense, em 2023. Foi vencedor do 7º Prêmio Inglês de Sousa (2022), na categoria poesia, do Prêmio Off Flip de Literatura (2021), em crônica, e do Prêmio Literário Cidade de Manaus (2023), na categoria infantojuvenil. Autor de Movimento Rápido dos Olhos (contos, Folheando, 2023) e Encantaria (infantojuvenil, Caravana, 2024).

