Leia aqui um trecho de "não deixarei que torture mais", de Daniel Bahiense:
Dois chutes violentos foram o suficiente para arrombar a porta do apartamento 402, na Rua Dias da Rocha, número 27, em Copacabana. Sem que fosse notada, a tropa de choque, encabeçada por agentes do CENIMAR e do DOPS, invadiu o pequeno prédio de cinco andares. Depois de uma longa procura, o esconderijo de Laura e Francisco, enfim, havia sido descoberto. Estavam escondidos há cinco semanas, ou melhor, desde a fuga de Laura, e aguardavam as orientações que viriam do comando regional da Vanguarda Revolucionária.
Assim que entraram no apartamento, os agentes se depararam com duas outras pessoas que não estavam procurando. Eram Iara e Carlos, dois guerrilheiros que também viviam temporariamente naquele apartamento, e que não tiveram tempo de fugir, tampouco de se defender. Diante das muitas armas apontadas puderam apenas se abraçar, enquanto eram sumariamente fuzilados. Augusto Rech, responsável pela operação, entrou no apartamento logo em seguida aos agentes. Olhou de forma panorâmica e horizontal para a pequena sala e, ao dar o primeiro passo, tropeçou em algumas garrafas vazias de cerveja espalhadas pelo chão. “Os filhos da puta estavam comemorando”, pensou. Depois de praguejar, com olhar atento, Augusto esquadrinhou meticulosamente o ambiente: viu sobre a mesa farelos de pão espalhados, uma xícara da qual exalava uma fumaça quase dispersa e uma edição francesa de Fédon, de Platão. Sobre o sofá já meio gasto no canto da sala repousavam uma roupa de cama amarrotada e uma camisa branca, na qual se lia uma frase em espanhol que não conseguiu traduzir.
“Chefe, deve ter alguém no quarto! Ouvi um barulho”.
Despertado pelo ajudante, uma espécie de imediato para suas atribuições mais diversas, Augusto Rech foi olhar o outro cômodo. Abriu a porta de forma cuidadosa, enquanto dois oficiais apontavam armas de grosso calibre na direção do quarto. Ninguém. Augusto começou a assoviar uma canção que lhe era muito familiar e foi olhar pela janela, para respirar o ar matinal de Copacabana e pensar, com calma, nos próximos passos daquela operação militar. Foi então que viu Laura pendurada, as mãos já enfraquecidas, segurando-se na parte de fora da sacada do prédio.
- Onde ele está? Me diz logo que te puxo de volta, mal agradecida.
Augusto ouviu um gemido de agonia e dor como resposta.
não deixarei que torture mais, de daniel bahiense
Daniel Bahiense nasceu em 1978, na cidade do Rio de Janeiro. Doutor em História pela UFRJ, estudou por muitos anos a ditadura brasileira erguida pelo golpe de 1964. Além de escritor e professor, dedica-se também ao estudo da Psicanálise. Autor de livros didáticos, publica agora o seu primeiro romance.