Leia aqui um trecho de "o último juíz", de Fernando Neves:
A informação chegara logo cedo. Não havia dúvida, um matador do governo brasileiro foi mandado para acabar com ele. Polidoro do Amaral se arrepiou de medo mas depois se conformou. Esperava que mais cedo ou mais tarde o governo partiria para alguma ação mais drástica. Assassinato puro e simples era uma delas, já amplamente utilizada no passado recente contra os opositores do regime. Mais dia menos dia, ele sabia, chegaria sua vez. Agora diante da certeza, Polidoro sentia um misto de medo e ansiedade. Era definitivamente um homem marcado para morrer.
A casa onde morava era o que se chamava no Brasil de uma pequena sede de sítio confortável. Mas ele estava no interior do Uruguai, nos arredores da cidade de Vergara, no departamento de Treinta y Tres, e por isso o termo local seria algo como pequena granja. Ali no passado haviam criado ovelhas e gado leiteiro, nada de grande expressão. Hoje a terra ao redor da casa abrigava algumas placas para captação de energia solar, um bosque com árvores frutíferas e mais nada. Um arroio passava pela propriedade, chamado de Las Madres, que depois se juntava ao rio Cebollati que desaguava na lagoa Mirim, dividida entre o Uruguai e o Brasil. As vezes o juiz gostava de imaginar que se cuspisse no arroio sua saliva chegaria ao seu país de origem.
A casa tinha três quartos, uma sala grande e uma cozinha ainda maior. O juiz pôs à mesa com as canecas para o café e os biscoitinhos amanteigados que comprara no dia anterior. Aguardava a chegada da equipe de segurança. Agora que havia confirmação da vinda de um assassino precisavam tomar providências. Levantar a ficha completa dele. Sabe se era novo ou velho? Como ele executa o serviço: tiro, veneno ou mãos nuas? Qual arma ele usa? Tudo era importante.
A equipe de segurança chegou a bordo de uma picape elétrica. Imediatamente a conectaram à tomada de força da propriedade e se dirigiram ao alpendre onde Polidoro os aguardava. O grupo que chegou era composto por dois rapazes e uma moça. Eles vieram com pequeno atraso, se serviram de café e se acomodaram. Ninguém tocou nos biscoitos. Abriram seus respectivos tablets, compartilharam o arquivo que haviam compilado a respeito do matador e projetaram holograficamente o material. A saber, a foto do matador. Ele se chama Stenio Freitas, um rapaz novo de uns 25 anos, disse a moça. Essa é a sua primeira ação de morte?, perguntou o juiz ansioso. Afirmativo, respondeu a moça. Ele se calou pensativo.
Ela prosseguiu com a exposição do arquivo. Filho de pequeno comerciante com dona de casa, morava com o namorado que tinha a mesma idade em apartamento alugado em Curitiba, sua cidade natal. Fizera curso superior, administração de empresas e ingressara no serviço público por concurso durante o tempo em que cursava a faculdade. Estava há dois anos no Ministério do Trabalho onde já chefiava uma subseção no departamento de registros. Seu grau de concentração era oito, sua memória nove, sua capacidade em realizar tarefas designadas dez assim como sua pontuação no stand de tiro. A pouca idade somada a essas habilidades faz dele um adversário difícil, disse um dos rapazes, completando: precisamos tomar muito cuidado e agir de forma decisiva. Se puder provocar um pouco de dor no processo não seria ruim, rosnou a moça vingativa.
Concordo, disse o juiz, mesmo com pouca experiência a motivação ideológica compensa a favor dele. Mas esse ardor dentro do peito dele pode criar uma situação a meu favor, ponderou Polidoro. De que maneira, perguntou a moça. Ora, se eu tiver sorte e souber como atrair a atenção dele é capaz de querer estabelecer algum diálogo comigo com o objetivo de me convencer que estou errado. Ele é jovem e não tem repertório de conteúdo e muito menos capacidade retórica para me envolver em suas opiniões, enquanto o contrário não é verdade. Assim, meus caros, se eu tiver sorte ele vai querer conversar comigo e nesse momento terei chance de dobra-lo. E não precisaremos recorrer a violência que, como vocês sabem, é contra meus princípios morais.
Os três se entreolharam em silêncio. Um deles pigarreou, limpando a garganta, e disse que concordava com o ponto de vista do juiz. De fato, o matador não seria páreo para o intelecto dele mas o rapaz era novo e estava armado. Uma pistola Taurus, brasileira mesmo, de oito tiros. E não podemos esquecer que ele tem bom desempenho no stand de tiro. Mas ele nunca matou, argumentou o juiz. Os seguranças olharam para ele e um deles disse: o senhor quer ser o primeiro da lista dele?
O juiz se encolheu na cadeira e a moça seguiu com os argumentos. Não podiam facilitar, o senhor é muito importante para o movimento, sua voz é fundamental e já temos relatos confirmados do surgimento de focos de resistência inspirados nos seus podcasts. Por isso o mais indicado, de acordo com as diretrizes de segurança do movimento era neutralizar a ameaça, afirmou a moça fazendo o gesto de cortar a garganta e concluiu: melhor prevenir do que remediar.
O juiz se levantou e suspirando contrariado foi buscar uma bebida mais forte.
o último juíz, de fernando neves
Fernando Neves é carioca, nascido em 24 de setembro de 1965, na cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Mora na cidade de São Paulo, continua Tricolor de Coração, é tem filhas gêmeas. Jornalista profissional, desde os tempos no Colégio Pedro II sempre se interessou pelas letras, seja como leitor ávido seja como aprendiz de escritor. O jornalismo abriu a oportunidade de escrever e praticar mas não foi suficiente para seu desejo de escrever cada vez mais. As opções de forma são a mininovela e o conto. O estilo adotado pelo autor compreende um arco que inclui suspense, humor, conspiração e realismo fantástico. Semanalmente ele exercita sua paixão pela crônica e poesia publicando em seu Instagram @fernandonevesescritor.