Leia aqui um trecho de "o arco-íris monocromático e outros fragmentods", de Gabriel C. Correia:
Jorge acordou com o estômago embrulhado e o braço direito ardendo. Correu para o banheiro e estornou o exagero da noite anterior em forma de um líquido espesso, marrom e quente. Diarreia. Segurou para não expelir também pela boca algo de natureza assemelhada. Conseguiu. Puxou o ar lenta e profundamente, segurando nos pulmões o máximo que conseguia. Depois expirou, ainda mais devagar e com pequenas pausas intermitentes. Repetiu o movimento algumas vezes até sentir que alguma ordem havia retornado ao seu mundo. Olhou para o braço, uma mancha vermelha se espalhava dos pulsos até o cotovelo. Lembrou dos conselhos médicos sobre sua alergia aos químicos que utilizava para revelar seus velhos e amados filmes fotográficos. Limpou o cu e foi para a cozinha tomar seus remédios. Como odiava fotografia digital. Tinha, obviamente, câmeras e computadores e aquela porcaria que o processo digital pede. Necessidades da profissão. Mas o que sempre o encantou na fotografia era o trabalho quase artesanal de exposição, ampliação e revelação. Se trancar no quarto escuro com papéis fotográficos, seu velho ampliador e mergulhar nas bandejas de imersão, era isso que o havia levado a escolher a profissão mais que qualquer outra coisa. Portanto, quando o cretino daquele médico lhe disse naquele consultório difuso e neutro que ele havia desenvolvido uma séria alergia aos químicos de revelação e que recomendava veementemente que abandonasse a fotografia analógica por completo, ou contratasse um assistente para revelar os filmes, Jorge não teve reação alguma – sua reação habitual em momentos de puro desespero. Simplesmente calou, ouviu, assentiu num movimento todo estrangulado, murmurou qualquer coisa, qualquer nota, e saiu.
o arco-íris monocromático e outros fragmentos, de gabriel c. correia
Natural de Porto Velho, crescido entre Rio Branco e São Paulo, Gabriel C. Correia estudou cinema em São Carlos e se tornou professor universitário e roteirista. Pesquisa e dá aulas no curso de Cinema da Universidade Federal de Mato Grosso. Vive entre Cuiabá e Campinas, entre o lugar de trabalho e o lugar da família. Transita entre o mundo empírico das contas e aulas, planos e compromissos e o mundo etéreo dos sonhos e pesadelos, despertos ou não. Por vezes se perde entre uma coisa e outra, abre uma porta e afunda nos abismos. Mas continua são . . . por ora.