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Leia aqui um trecho de "o livro das minhas partidas", de Cecília Spano:

 

Passei a maior parte da minha infância, até o início da adolescência, sentindo que minha existência era um fardo. Não havia espaço para erro, para afeto, para escuta. Desde muito pequeno, fui colocado em um lugar que não era meu: o de responsável, cuidador, adulto.

Mas nenhuma dor supera o que vou contar agora.

 

Eu tinha um melhor amigo, filho dos meus padrinhos. Tínhamos a mesma idade, ele sendo apenas alguns meses mais velho. Estudávamos na mesma escola, e naquele ano, por coincidência, caímos na mesma sala. Esse meu amigo, ao contrário de mim, era daqueles meninos bons em todos os esportes, era sempre o artilheiro da escola, sabia jogar basquete, andar de skate - aquele típico menino bem popular, que se destaca e que todo mundo queria estar junto. Só que ele era péssimo nas notas, então as vezes me chamavam para estudarmos juntos.

 

Era um dia de inverno, bem frio, e estávamos no quarto dos seus pais. Precisávamos terminar de ler um livro, e ele claramente não estava a fim, pois ficava brincando o tempo todo, e me atrapalhando. Até que eu disse a ele que, se ele não parasse com as brincadeiras, eu iria embora.

 

Foi quando ele disse:

— Se você deixar eu te comer, eu paro e começo a estudar.

 

Aqueles eram tempos onde não se falava sobre essas coisas como hoje em dia, e eu era uma criança muito ingênua, tanto que nem sabia o que “te comer” significava. Então ele explicou que eu teria que tirar as calças e que ele colocaria o "pintinho" dele atrás de mim.

Naquele momento, eu só queria terminar de ler meu livro, a prova seria na manhã do dia seguinte, e sem ver muito problema naquilo, eu permiti. Não creio que houve penetração de fato, pois não senti nenhuma dor. Afinal, éramos duas crianças. Acho que ele só ficou se esfregando em mim por algum tempo, até que me cansei daquilo e pedi para ele parar. Ele se recusou e só parou quando ameacei chamar a mãe dele.

 

Em várias outras ocasiões ele tentou repetir aquilo. Recusei. Ele usava chantagem emocional: dizia que não seria mais meu amigo, que eu o deixava triste, etc. Até que outro amigo veio me dizer que “também queria fazer o que ele fez comigo”. Foi aí que percebi: ele estava contando para os outros.

 

Me senti sujo, traído, devastado.

 

Só anos depois compreendi que aquilo foi um abuso. E, naquele dia, mesmo sem saber, eu morri pela primeira vez.

o livro das minhas partidas, de cecília spano

R$ 60,00Preço
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  • Cecília Spano é formada em Administração de Empresas e, atualmente, é empresária do ramo da gastronomia, especialista em massas italianas e pães artesanais. Atua também como palestrante nas áreas de gênero, sexualidade e vivência trans, compartilhando sua trajetória com sensibilidade, humor e coragem.

    Mulher trans, lésbica, e orgulhosa de sua caminhada, Cecília enfrentou inúmeros desafios emocionais, sociais e familiares até conseguir se reconhecer, se afirmar e viver com autenticidade.

    Sua história é marcada pela resistência e pela reinvenção: de filho oprimido a mulher plena e protagonista da própria vida. Em cada capítulo da sua jornada, ela rompeu silêncios, quebrou tabus e se reinventou — inclusive após os 50 anos, provando que nunca é tarde para ser quem se é de verdade.

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