Leia aqui um poema de "peixássaros (uma eztetyka ancestralizada)", de Harley Almeida:
EZTETYKA I
Quero falarna voz de um peixássaro!
Em um ruído ressonantede um roçar de corpos líquidos
em movimentos ancestrais,brincando com cristaisde sais invisíveis.
Em uma euforia sinfônicade pássaros e peixes,presentes na densidade
infinita do m[ar].
Entre a voz,o som,o chiadoe o voo.
Em um ruído
distante da terra,na lama que ruminacom o mundo das águas;
nascente e perene,debaixo de um chãosoterrado de barro,
embalado pelo movimentodas placas tectônicasque deslocam
territórios vivos,físicos e existenciais.
Terras que engolem raízesdebaixo dos pés,
raízes que se entrelaçamentre camadas espumadas
produzindo flutuações
orgásticas;orgânicas e inorgânicas,sem órgãos.
No mormaço de um corpo aladoque paira num contratempoimpreciso,
na duração de um repouso leveque transpira alegria,na velocidade de um lampejo,o clarão presente
na intermitência
de um som-ondaque atravessa um bocejo
ensolaradoe cria um mundo sem fim.
Da sonda espacialao movimento de corpos,
corpos expostos ao sol,calor nos trópicos
traduzidos
em uma língua crioula.
Da revoada alienígenaque salpica de cores
carboníferas,ao amanhã que
brevemente emergirádo futuro que já aconteceue de um agora
que se repete outro.
Assim contam os Griôs
entre brasas e o clarãode mais um fogo
sobrevivente.
No encontro das cinzascom o amarelo queimado,há uma mistura paradoxal,uma maré ruminante...
rios voadores que corrompemparaquedas lunares,que surgem rugindo
entre o Índico e o Atlântico,entre os trópicos quiméricossem lateralidadede uma transtopia tropical.
Sob esse céu prussiano,cor que vem do Maciço,Maní-Mãdi é oca que anda.
Na descida de um rio-serpente,pedra vira água,água já é mais um corpo,um corpo repleto de ondas.
Ondas que empurram as aves
ocupando as veias tangentesdo sertão mais profundo.
Aqui, quase tudo que era ourojá virou lama,
Ave de mau agouro,
feridas abertas,
casas trancadas
no ancoradouro
muita gente fez sua morada,esconderijo da ordem,medo de virar um fóssil cristalizado
do progresso.
Quase tudo que transborda,
tange...
povoa por fora,em volta de um olho fugitivo,
no germe da multidão,na poeira de ossosque entope a máquina
de moer nosso irmão.
Seguem os retirantes famintos,ocupantes estrangeiros,semeadores de sonhos,contadores de histórias,
desses que se veem bordados
mata adentro
pela mão encantadado espírito-pássaro de criança.
Quase tudo se aniquila,exceto os sonhos,
e as composições
carboníferasdos espíritos vegetais,
a voz da ave que,num mergulho certeiro,trovoa no meio do mundo,
que se transforma e se desfazna ponta de uma lançalançada no tempo das levezas.
peixássaros (uma eztetyka ancestralizada), de harley almeida
Francisco Harley de Oliveira Almeida é um artista cearense independente, professor de sociologia e antropólogo, cuja trajetória é crivada pela interdisciplinaridade e a guerrilha poética. Sua atuação artística desdobra-se na experimentação da imagem, do som e da escrita poética, buscando tensionar fronteiras e ampliar modos de experimentação com a vida.
Descendente de indígena e não aldeado, sua obra estabelece um intercruzamento entre mundos diversos, compondo um campo de forças em que pensamento e criação se enlaçam com a educação. Seu trabalho poético potencializa modos de vida diversos, retomadas e lutas, resistências e permanências de povos da ancestralidade, configurando-se como uma ferramenta política, antirracista e contracolonial.
Sua formação acadêmica indica rastros interdisciplinar. É Bacharel em Humanidades e Antropologia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Licenciado em Sociologia (UNIFAVENI). Possui Especialização em Segurança Alimentar e Nutricional (UNILAB – UNESP) e Mestrado em Artes pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Como pesquisador, dedica-se aos saberes e práticas das aldeias, das florestas, dos terreiros, do mundo rural, das periferias e das feiras. Nesse percurso, pensa os territórios como encruzilhadas de encontros, onde se criam possibilidades de trocas e novas alianças.
Ao misturar e deslocar a sociologia e a antropologia, sua trajetória acadêmica e artística abre diálogos interruptos com a arte, a ciência e a filosofia da diferença. Memória, ancestralidade e experimentação se costuram em uma constelação encantada, ancestralizando caminhos para pensar futuros possíveis.

