Leia aqui um poema de "poemas de antagonismo", de Flavia Azolin:
A Fábula
Estou convencida de que sou uma fábula
Eu não tenho cor nem sentimento
Eu tenho apenas meus acontecimentos
E uma moral
Não que haja em mim qualquer percepção da realidade ou juízo de valor
Em verdade, é a realidade que tem uma percepção a meu respeito
E faz questão de esclarecê-la com suas críticas e resenhas
Aos leitores mais apressados, creio que desperto uma certa monotonia
Apesar de maçante, as crianças insistem em me achar um pouco deprimente
De modo que me constituí melancólica demais para uma canção de ninar
Sobrou a fábula
Eu passo uma moral, uma lição
Destinada aos jovens, para que desviem dos erros
Sou um aviso, uma profecia que eles quebram em suas próprias vidas
Podem mudar o meu final quando me projetam em suas realidades subjetivas
Mas eu, em mim, não sou real
Sou uma fábula
Passo pelos olhos, pelos lábios, pelas mãos
Por vezes até alcanço um coração
Minha história é repleta de palavras que causam a ilusão da imersão
Mas, no final do dia, continuo sendo apenas uma fábula
Ninguém consegue entrar de fato
E eu nunca saio
Eles são livres lá fora
Eu estou presa aqui dentro
Um dia, talvez, alguém adquira algum exemplar de mim
E o aninhe em sua estante
Me lendo de quando em quando
E eu adquira, com a rotina, alguma sensação de realidade
Mas não posso
Não devo esquecer
Que eu, em mim, não sou real
Sou uma fábula,
Algum leitor pode desenvolver favoritismo por mim
Talvez um ouvinte me conte a outro alguém
Sou um folclore
Estarei viva ao redor de fogueiras e em jantares de família
Mas jamais serei capaz de abandonar o posto que me foi destinado
Fui concebida pelo imaginário popular
Constituída das muitas percepções de mim
Não posso e nunca poderei ser real
Estou destinada a vê-los, pelas ruas, pelas praças
Posso estar na cabeceira de alguém
Arrisco que até na mente
Mas não seria certo que alguém tentasse decorar a própria vida fazendo companhia a mim
Eu fui concebida para ser só, com raros alívios causados pelo refrigério da companhia dos meus leitores
Mas no fim do dia
Até o vento folheia minhas páginas
Eu sou uma fábula
Eu evoco imagens e sensações
Mas eu, em mim, não sou real
poemas de antagonismo, de flavia azolin
Nascida em São Borja (RS), Flavia Azolin é jornalista, acadêmica do curso de Letras – Espanhol e mestranda em Estudos da Linguagem. Escreve poemas, contos e tudo o que sente vontade desde a infância. Se considera algo entre escritora, poeta e alguém que só gosta muito de dar pitaco sobre tudo.