Leia aqui um trecho de "rococou", de Wilson de Carvalho:
Meu estômago se revirava estimulado pelas lembranças que vinham à tona na cabeça. Quase podia sentir o gosto daquele pesado e cremoso pudim de leite que minha mãe fazia. Era cheio de furinhos, algo que, tinha gente que dizia, resultava de erro gravíssimo ao bater a mistura antes de despejar na forma. Eu nunca tomei como errado algo tão gostoso. Quase podia sentir, ao lembrar, a calda de caramelo com um leve amargor inundando minha boca.
Lembrei também do arrumadinho que ela fazia. A gente debulhava juntas o feijão macassar da feira, depois ela botava no fogo e enchia a cuscuzeira da fuba que já havia deixado hidratando. Era uma mistura tão gostava, o feijão, o cuscuz refogado imitando uma forafa, queijo coalho, verduras, muito coentro, arroz e limão. Não precisava de mais nada. A pouca saliva que meu corpo semi desidratado produzia tomava conta da minha boca só de imaginar.
Ao abrir os olhos vi a pilha de mantimentos à minha frente. Nada fresco, nada verde. Apenas pequenos cubos de proteína, lipídios, carboidrato, minerais e vitaminadas merdas que não tinham gosto de nada. De nada agradável, pelo menos. Que saudade de comer algo além dessas coisas desidratadas.
Sei que alimentação instintivamente é só para sobreviver, não por prazer, mas como é que me adaptaria àquilo quando tinha tantas memórias boas de casa? Ao menos no que dizia respeito à comida. Me preparei para aquilo, ficar confinada, ter as necessidades básicas adaptadas e remodeladas, mas eu não esperava que... Bem, que fosse estar sozinha nessa. Tudo havia se tornado muito mais estressante desde que minha presença tornou-se única na nave.
Às vezes tudo o que me restava a fazer era sonhar. Com frequência me vinham sonhos na Terra, os quais odiava, já que só serviam pra me decepcionar ao acordar. Às vezes também me perdia em lembranças, acordada. Era difícil discernir mais tarde os sonhos dessas lembranças. Que estranho, lembrar de uma lembrança gera confusão. Acho que a falta de movimento naquele espaço superava a falta de comida de verdade. Eu já havia contado as janelas, os quadrados do piso, as marcas em horizontal e transversal, os objetos nas bagagens... Tudo! Agora restava eu e eu. A cabeça escorada na porta trancada da outra sala, sem jamais algo para fazer além de pensar. E como eu pensara naqueles dias. Fazia pouco tempo que tomara consciência de meu corpo, e desde então tudo doía.
rococou, de wilson de carvalho
Afrofuturista, Wilson de Carvalho é um escritor e cineasta paraibano da cidade de Itapororoca, onde atualmente reside, apaixonado pelo estranho e pela ficção científica. Possui graduação em Letras-Inglês e Mestrado em Letras, onde desenvolveu pesquisa sobre o movimento do Afrofuturismo e a teoria da interseccionalidade. É também professor do ensino fundamental da rede pública de ensino e, atualmente, graduando do curso de Cinema e Audiovisual. Participou de algumas antologias de contos e tem um romance publicado, intitulado Sol de Julho.

