top of page

Leia aqui um trecho de "salgado no ventre", de Bruma:

 

o quarto do filho morto

 

Disseram que mataram. Pobre do menino. Mataram sim, e foi à bala. Lançaram o corpo morto na vala. Notícia aqui corre igual cachorro atrás de carro. Pobre. Pobre. Pobre. Três tiros. Estourou um perfume de pólvora. O peito afundou cor de rosa feito chiclete pisado. A criança morta, jogada no asfalto. Três tiros. Plac, um na cabeça. Plac, um bem no meio do peito. Plac, o terceiro varou o estômago. Disseram que varou. Como fala mesmo? Mula. Levava carga. Nove anos. Nove anos de idade. Ele tinha isso, não é? Acho que sim.

A polícia arrancou a arcada dentária. Tiraram o coro com faca amolada. Emprestada. O açougueiro? Pôs o pé na estrada. E o pai endoidou. Pensa num pai. O caixão pequeno, cheio de coroas em volta. Gente chorando, toda torta. Gente com vela na mão. Perfume de rosa-da-noite. Foi-se. Foi-se o menino brincante. Pensa num pai. Ele rasga os desenhos: “não quero mais”. O pai do filho morto é o pai de todos os demais.

Agora fica lá, o pai, sem rumo pelo quarto. O quarto do filho morto, do filho que não vive mais. O cheiro de capim crescido na margem. Abre a janela, observa a paisagem. O pai é o filho ainda vivo. Cresceu nas vielas sabendo dar tiro. Sentava na laje para comer suspiro. E tomava banho na caixa d’água. Isso quando menino.

Pensa num pai. Ele sente o travesseiro, ardido de sol. A espuma quente, a dobra do lençol. Endireita os brinquedos. Traz desenhos de colorir. Faz crianças-árvore com palitinhos de sorvete, pendura desenhos na parede. Lista de prioridades. Enfeites. O pai é pai de ninguém.

Minha mãe mandou eu escolher esse daqui! Cano preto longo, o tambor abarrotado de bala. Pode ser que viva, pode ser que parta. Que nervoso. Que nervoso. O peito todo oco no quarto do filho morto.

Todo dia o pai volta lá. Chora mais um tanto. A mulher o deixou há pouco. Disse que não dava mais. Aquele sufoco todo. O quarto do filho morto é um verdadeiro esboço. Um esboço de tudo o que podia ser, mas não... Um esboço do diabo amassando o pão. O cão chupando manga. Agora a mãe vive vendendo miçanga na praia para não cair no pó. Quanto nó. Disseram que o peixe no litoral é mais barato. Ouvi por aí esse boato.

Mas vou te dizer o que não é boato: o quarto do filho morto ainda está de pé. Ouve só: o quarto do filho morto é o pega-pega na rua, o tender da ceia, a gelatina de limão, a bicicleta descendo o morro, a marchinha de carnaval, o ovo de páscoa, a coca fresca na lata.

Quebrou o facão do Seu Machado. Açougueiro safado. Patrocinando assassinato? Assassinato de pobre preto. Melhor é este traste preso. Ou que leve uma surra de vez. Paz.

Ouvi dizer que a vida dá sinais de que a morte está à espreita. Cuidado com a colheita. Ela é injusta, mas é feita. Dia após dia, nas ruelas da Vila Rica, o quarto-do-filho-morto está longe de ser mentira. É presente. Vive dentro dum pai doente. Dopado de pílula. Todos os dias, uma pílula. Glub. Glub.

O quarto do filho morto é branco feito o hospício. Precisa de tinta? Deixa, amanhã a gente pinta. O quarto do filho morto é uma masmorra secreta. Ou melhor, discreta. Lá tem doce de leite, bala de canela, bolacha recheada, bolinha de gude, um pote de formigas mortas e um ioiô quebrado. O quarto ainda está em perfeito estado. O quarto do filho morto, eu falo.

Vai que ele volta...

 

salgado no ventre, de bruma

R$ 50,00Preço
Quantidade
  • Um escritor da capital que fugiu para o interior. Paulista metido a ator, diretor teatral e dramaturgo, influenciado na estética e forma por essas vozes que o teatro habilmente costura e reproduz. O primeiro escritor de cronicontos do país (sim, inventei isso) e autor das obras "Eram Dias de Cão" e "Grite Quando Se Queimar", ambas coletâneas de contos. Por fim, absurdamente divergente (gosto de prosa curta e esquelética). Agora vou soltar qualquer coisa em francês fingindo que sou bilíngue: C'est la vie.

bottom of page