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Leia aqui um trecho de "saudade de casa: relatos de uma desencaixada", de Thassiane Goulart:

 

o dia em que a menina virou árvore

 

era uma vez,
uma mocinha vista como muito boazinha por todo mundo,
ela carregava um enorme vazio no peito.

 cresceu dentro de uma grande cidade cinzenta, cheia de prédios, de carros e comércios.
quando pequena, ensinaram a ela que deveria trabalhar para ter dinheiro e comprar coisas, e assim ser alguém na vida.
a menina não entendia o porquê disso,
não contava para ninguém, mas não queria viver essa vida.
a menina na verdade, queria viver junto aos animais, junto aos rios, junto às árvores e em torno de uma grande comunidade.
onde a conversa das pessoas não seria sobre o preço dos objetos, sobre o trabalho, sobre as notícias, sobre o perigo das ruas, e sobre as obrigações do dia a dia.
onde as pessoas conversariam sobre o céu, sobre os rios, sobre os sentimentos e sobre as cores, e quando não tivessem mais nada para conversar, ficariam em silêncio.
a moça era gentil com os outros, mas por dentro era muito triste.
e muito quieta.
não conseguiu lutar durante a infância para ser diferente,
e seguiu os passos que disseram a ela que a faria completa.
quando cresceu, começou a trabalhar para ter dinheiro e comprar suas coisas, ser alguém na vida.
passou a conversar com os outros adultos sobre o preço das coisas, sobre o trabalho, sobre as notícias, sobre os perigos da rua, e sobre as obrigações do dia a dia.
era tímida demais, não tinha coragem de dizer aos outros o que de fato queria e como pensava.
sequer tinha coragem de realizar os movimentos que desejava, só conseguia fazer o que se esperava dela.
a moça trabalhava e ia para casa todos os dias.
ela pegava um ônibus, um trem e chegava ao trabalho, e na volta, fazia o mesmo caminho. ela fazia isso 5 vezes na semana.
no caminho observava logos, postes, prédios, casas, carros, avenidas, ruas e mais ruas, com placas, e pessoas por todo o lado.
a única coisa boa dentro desse caminho eram as árvores que cercavam a cidade.
os pequenos espaços com grama, espaços verdes.
lindas árvores que coloriam um pouco aquele cenário apocalíptico, cercado de cinzas e tristezas.
ela gostava da praça, com os pássaros que resistiam ali e cantavam em meio a tanto barulho.
em específico, gostava da grande árvore no centro da praça,
a garota olhava com tremenda admiração para aquela árvore corajosa,
que continuava bravamente existindo mesmo com toda a devastação de suas iguais, e de todo o ambiente que a cercava.
sentia que ia até chorar quando a olhava e sentia ela olhando de volta para ela.
sentia uma imensa vontade de abraçá-la, mas lotada de tanta vergonha, não conseguia o fazer.

ninguém fazia isso, e ninguém ligava para aquela árvore desse jeito.
a garota pensava que existia algo de errado com ela por gostar de algo que ninguém se importava tanto assim.
passava timidamente todos os dias ao lado da árvore, se segurando para não abraçá-la.

sentia cada vez mais que seu peito estava ficando mais vazio.
mal sabiam o tamanho da tristeza que essa menina carregava no coração.
andava corcunda, como se suas costas fossem quebrar de tanto peso.
resistia muito em deixar seus desejos florescerem, e não contava a ninguém que queria outra vida,
sentia falta de pisar na grama, de acordar com o nascer do sol, de acender fogueiras, e observar as estrelas à noite.
após mais um dia cansada de toda a frustração da vida em meio ao cinza,
a menina voltava para casa preparada para fazer o mesmo percurso olhando para o chão, então avistou a árvore e timidamente a encarou.
porém algo estava diferente naquele dia, a garota havia sentido que tinha morrido de tanta tristeza carregada em seu peito pela vida que levava.
a jovem sentiu que havia perdido tudo, sua alma, sua voz e seus sentimentos.
carregada de um vazio enorme, sentiu uma pontada de pena de si mesma.
imaginou o que aconteceria se por um minuto fizesse o que desejasse,
teve um vislumbre de coragem, mas também um ato de desespero total por perceber que estava morta, e correu em direção a árvore, olhou para o lados apreensiva, com medo que estivessem olhando o que fosse fazer;
abraçou a árvore, com todo seu desejo,
com todo seu coração.

 e enquanto o fazia, se debruçou a chorar em profundo desespero.
sentiu como se a árvore abrisse seus braços e a acolhesse como ninguém jamais o fez.
e ali descarregou toda sua tristeza e percebeu que a árvore também a sentia, e que as duas eram grandes amigas dessa dor.
tão segura nos galhos da árvore, não se importou com nenhum olhar julgador e de estranheza das pessoas, porque ali se sentiu protegida e finalmente em casa.
e aos poucos, as lágrimas e soluços pararam, sentiu uma calma tão profunda, uma segurança tão imensa que pareceu como se retornasse para o ventre de sua mãe.
a identificação com a árvore era tanta que as raízes da árvore passaram a fincar as perna da menina no solo,
e de repente, os braços da moça se estenderam ao tronco da árvore.
as pessoas que passavam se chocavam ao ver que uma garota estava se transformando em um pedaço daquela árvore.
não dava mais para saber o que era menina, o que era árvore,
as duas se fundiram inexplicavelmente.
e ficou registrado na memória de todos que passaram pela rua naquele dia, o dia em que a menina virou árvore.

saudade de casa: relatos de uma desencaixada, de thassiane goulart

R$ 45,00Preço
  • me chamo thassiane goulart. no momento em que escrevo isso, tenho 22 anos, moro na capital de são paulo e sou uma trabalhadora comum. a vida até então, tem sido uma incessante busca por um local onde eu pertença, onde seja capaz de me encaixar. até agora, pulei de um lugar para o outro na tentativa de um dia me encontrar. em meio a tantas mudanças inesperadas, minha única constante é a escrita. ela aparece em momentos que menos espero. mesmo quando tenho dificuldade de reconhecer minha alma, mesmo quando meu coração parece incapaz de sentir, ainda assim, sou surpreendida pelo surgimento de palavras que revelam sentimentos misteriosos que nem sabia que existiam, desvelando uma intensidade assustadora e não tão óbvia. escrever é a única coisa que faço de verdade e me faz sentir como se existisse. escrevo desde que me conheço por gente. algumas vezes, posto o que penso/sinto no instagram, através da página @desocultase. 

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