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Leia aqui um trecho de "selo", de Marcella Mahara:

 

É a minha primeira menstruação. Manchas começam a sair nas calcinhas, são marcas escuras. Sinto vergonha. Me sinto suja. Escondo todas as calcinhas manchadas em uma caixa em cima do armário. Uma prima mais velha, que frequenta a nossa casa, encontra a caixa com as calcinhas. É por causa do cheiro que começa a exalar pelo quarto.

 

Minha mãe me chama. Aqui estão elas, mãe, prima, tia, todas juntas sentadas me encarando. Mãe e tia choram muito. Eu não entendo, mas sei que tem relação com as calcinhas, porque vejo a caixa sobre o colo de alguém.

 

Então elas, uma de cada vez, me abraçam. Continuam as lágrimas. Me sinto desconfortável. Elas, estas mulheres, finalmente me explicam o que está acontecendo, o que são as manchas, porque elas acontecem. Percebo que não estão tristes, mas emocionadas, felizes. É um acontecimento, para elas e para mim, eu acho. Alguma coisa importante.

 

Depois, aprendo a lavar as calcinhas com uma esponja e colocá-las no varal para secar. Espio pela janela do meu quarto, elas estão na varanda, pegam sol e retornam, não muito, às cores de origem. Entendo que do tecido não há como apagar as marcas.

 

É sangue. Me explicam para que eu não fique constrangida. Não estou me cagando, penso, mas não sei se com alívio, não me lembro. Entendo que sai sangue da superfície, não tão latente quanto eu pensava, a mesma que esfrego contra a lateral da cama. Anos mais tarde, entendo que não é a mesma coisa, que aquilo que eu esfrego contra a cama não é o lugar de onde saem as manchas escuras. Com o tempo elas se tornam vermelhas, como devem ser. Minha mãe limpa a caixa fedorenta, o esconderijo. As calcinhas secam sob o sol quente.

 

Na varanda, a que dá para o meu quarto, tem um sofá. Tem também algumas plantas e quadros. Tem uma vista bonita e às vezes observo os vizinhos. A vizinha ao lado tem um cachorro, de vez em quando ela sai para alimentá-lo na varanda. Acho a cena melancólica, me deito no sofá, observo cada movimento. Estou alimentada, como uma cadela pacificada, descansando no sofá após o almoço.

 

Sonho que um bicho grande, alado, me busca nesta mesma varanda, fura a rede, me põe em seu colo e voa comigo pela cidade. Consigo ver o mar de cima. Sou criança, mas o meu corpo muda, como se o mar, de repente, estivesse vencendo a infância. O bicho tem muitas cores, parece ter saído de um conto de fadas. É o primeiro e único sonho, de que me lembro, que me permite voar fisicamente. Conto para uma amiga. Ela ri e diz que eu estou mentindo, que sou muito mentirosa.

selo, de marcella mahara

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  • Nascida e criada no Rio de Janeiro, tem 24 anos e é formada em Letras pela UFRJ. Atualmente, é mestranda e desenvolve uma pesquisa sobre os laços familiares e a puberdade na obra de Clarice Lispector. Da pesquisa, que tem algo de autobiográfico, surgiu o desejo de escrever Selo, seu primeiro livro.

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