Leia aqui um trecho de "suspiros cartográficos", de Sarah Mângia:
Mata Atlântica
Umidade devorando matéria. Perfume de terra molhada que decompõe meus sentidos. Bióloga experiente, não caí na prosa metálica entre arapongas que hipnotiza ouvidos distraídos. Mas desabei no bate-papo miúdo das rãzinhas do folhiço. Meu olhar ludibriado pela luz que morre entre as copas das árvores me faz escorregar nas palavras. Como se meu passo coubesse no espaço entre as serras. O céu da boca da bota segura um escândalo emocional enquanto rubrico as trilhas. A Mata Atlântica é feiticeira profissional e capaz de inaugurar sentidos. Escuto o verde. Enxergo um cheiro de chuva. Apalpo o berro dos bugios. Salivo um Rio Doce.
Nuvens abraçam montanhas e deslizam silenciosas tateando o caminho. As araucárias acompanham o movimento como líderes de torcida na expectativa de que a neblina se entorne pelos vales. Barbas de velho despencam guardiãs da floresta. Costuram as cadeias de montanhas do Espinhaço. O assovio das rãs deságua em laços invisíveis de silêncio e som. Entre as braçadas do muriqui, já não sei mais se é ele que se vai ou se é meu coração que vacila embriagado nessa coreografia aérea. É assim que me flagro fazendo morada nas bromélias que crescem enfileiradas como verrugas no chão e no corpo das árvores.
A Mata Atlântica desfia histórias em cotas de altitude, comprometida em acolher existências diversas. Desço a montanha na companhia vulnerável de juçaras e sapos-pingo-de-ouro, e descubro o tempo e o espaço da floresta: o que observo no pico, não encontro no vale. Alcanço o pé da serra e abraço a desordem geográfica dos meus pés que carimbam a areia da restinga, criando um vínculo entre o aroma de pinheiro e o sabor de maresia. Penso que tudo em mim é feito de travessias.
Por mais que eu queira amarrar meus sentimentos entre essas linhas, detalhar a Mata Atlântica é inevitavelmente me perder em poesia sobre a existência. Desvio o olhar urbano e fragmentado para viver mico-leão-dourado, crescer palmeira, e falecer musgo em tronco caído no chão.
suspiros cartográficos, de sarah mângia
Sarah nasceu em São João Del Rei, Minas Gerais, em 1986, e cresceu em Divinópolis, onde se formou em Biologia, na Universidade do Estado de Minas Gerais. Mestre em Biologia Animal pela Universidade Federal de Viçosa e Doutora em Zoologia pela Universidade Federal da Paraíba, se tornou especialista em sapos. Atualmente, é cientista na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, onde descobre e descreve novas espécies de sapos, e estuda a evolução desses animais. Além disso, atua como consultora ambiental em todo o Brasil. Inspirada por suas viagens pelos biomas brasileiros, decidiu compartilhar suas experiências e percepções sobre a natureza e as diversas realidades do país em seu primeiro livro.