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Leia aqui um trecho de "urbanas epifanias", de Frederico Araujo:

 

monumentos

 

carcomida. a madeira escura bem carcomida ao relento. nomes gravados, esguios como crianças mortas, mal se consegue ler. tentei. no pedestal, uma placa oxidada ainda permite fragmentos. meninos e meninas de rua covardemente assassinados ... esta cruz, símbolo e grito pela vida ... foi aqui ... crianças ao amanhecer daquele trágico dia. o acaso me fez passar no local. há muito queria, sabes. travo na garganta. imagens ficaram na cabeça todo esse tempo. na época morava no sul. sol de inverno, tarde amena. sem o noturno fervo de 30 anos atrás. fervo de sexos marotos drogas pra matar a fome punhetas siriricas iniciáticas pequenos furtos de senhoras descuidadas. fratria. fratria desesperançada, digo. alegre, viva, digo. não se suspeitava de precipício à espreita. como estar atento se todo dia toda noite era um precipitar? hoje apenas o silêncio ruidoso de pedestres alheios. hoje apenas o silêncio gestual do talvez morador na borda do chafariz. hoje apenas o silêncio campanário dos sinos a dobrar. hoje apenas meu silêncio engasgado frente à cruz carcomida. singeleza de madeira olvidada. avassaladora presença de pedra e cruzes metálicas e torres majestosas a lançar escuros sobre a cruz desapercebida. há trinta anos, lançava escuros sobre a cruz que ainda seria. véspera de ser cravada no chão como um lamento a mais. dei uns três passos para o meio fio e o que vi eram gritos, disse memoriosa. quem? quem? uma sobrevivente, ora! havia sumido, a imprensa, dado como morta. reapareceu ano passado temerosa. li reportagem há pouco tempo. noite invernal, sinos ainda ecoando 12 badaladas, dois ou três carros sem placa param em frente. os depoimentos divergem. logo explodem rajadas de fuzil em direção à fratria de meninos e meninas que sonhavam ou faziam sexo ou contavam mentiras ou batiam uma ou cheiravam cola ou simplesmente riam ou choravam nas proximidades da igreja. oito corpos nunca mais sonharam fizeram sexo ou mentiram ou cheiraram cola ou bateram uma ou riram ou choraram. tornaram-se ilegíveis nomes na cruz carcomida. os fuzis seguiram a vida matando fazendo sexo mentindo cheirando rindo dos corpos que não mais sonharam fizeram sexo cheiraram riram choraram. todos condenados. todos livres. felizes em suas fratrias de celerados, em suas sacrossantas famílias brancas ou de almas brancas. de onde você tirou isso? um documentário recente. mando o link se quiseres. numa última mirada vi pedra ferro madeira fora de foco. como que fundidos num borrão de tempo. perene tirania mineral, perecível singeleza orgânica. naturezas mortas, morrentes. ambas, modos de olvidar, de fazer olvidar, digo. oito crianças negras sem sopro, vermelhos escorrendo pegajosos pelo chão. faz cara de discórdia. ou seria fruto de meu marejado olhar? não é a mesma coisa a catedral majestosa e a pequena cruz resistente, diz pastoral. monumentos do mesmo inferno, insisto irritado. pequena cruz se quer redentora como qualquer majestade. silenciamos. logo desvia irônica, ardilosa. acha mesmo que pode ser amena alguma tarde ali ao redor? oito crianças negras sem sopro, vermelhos escorrendo pegajosos pelo chão. dezenas com o sopro entrecortado para o resto da vida. devastação de sonhos que seriam.

urbanas epifanias, de frederico araujo

R$ 45,00Preço
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  • Ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dedica-se desde o final dos anos 1990 a estudos nos campos da epistemologia e da filosofia da linguagem. Desenvolveu junto a seu grupo de pesquisa um processo de criação e expressão coletivo nomeado “caosgrafia”, assim como um modo de proceder a escrita criativa nomeado “transescritura”. Tendo esse modo por referência, vem dedicando-se a criar ficções, algumas delas divulgadas em periódicos ou coletâneas acadêmicas. Dentre suas publicações individuais, destaca-se o livro de sua tese de doutorado “Saber Sobre os Homens, Saber sobre as Coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza” (DP&A, 2003). Mais recentemente publicou seu primeiro livro de contos intitulado “Escrinvenções Mal Ditas” (Folheando, 2024). Atualmente volta-se também a gerir a nano editora malayerba junto a parceiros de aventuras literárias.

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