Leia aqui um trecho de "urubu social — e outros contos", de Lucas Merces:
 
Sou uma barata.
 
Se tal afirmação não foi feita em meus primeiros anos, é porque ser barata consumia tanto de mim que não me sobrava tempo. Eu apenas era uma barata.
 
Lembro de como meu lar, apertado e aconchegante, sempre tinha o cheiro de folhas frescas — embora mortas — que minha mãe espalhava pelas paredes. Tudo parecia tão seguro, que viver me parecia algo como uma viagem que duraria pelo resto da vida.
 
Mas então, conforme fui crescendo, e meu lar fora se tornando apertado para meu corpo em desenvolvimento, passei a pôr a cabeça para fora de nossa toca, e me vi assaltado pelos odores do mundo que sempre esteve ali, mas que reciprocamente ignorava minha existência.
 
Uma vala profunda e cilíndrica que se estendia desde as profundezas escuras até seu ápice distante, bem acima de todos, por onde luzes entrecortadas por sombras entravam e nos banhavam. Eu vi baratas grandes e pequenas, vi muitas baratas escuras e algumas poucas albinas; muitas deformadas, com antenas e partes da casca faltando; e outras que voavam, já não se importando com aquelas limitadas ao chão.
 
— Somos cem por cento potencial. — eu ouvira certa vez. — Todas podemos ter asas, mas poucas conseguirão voar acima das outras.
 
— Um dia eu terei asas. — dizia com orgulho, para que minha mãe se sentisse melhor com a sujeira do mundo. — E então vou levar a senhora para voar também.