Leia aqui um trecho de "véu negro", de Chico Araújo:
O rosto de sua mãe, na morte, aparentava uma tranquilidade que ela nunca demonstrara enquanto estava viva. Era como se ela tivesse se livrado de um imenso fardo, como se, só naquele momento, tivesse alcançado uma liberdade que nunca possuíra antes. Ela parecia estar feliz, como nunca estivera. As pessoas sempre haviam falado da morte como algo triste, mas, para sua mãe, a morte parecia ter sido seu único momento de felicidade, uma felicidade que ela jamais alcançara em vida.
O pai de S. praticamente não chegou perto do caixão no qual o corpo da esposa repousava. Ficou observando-o de longe, como se tivesse algum tipo de receio de se aproximar daquele ataúde, daquele corpo sem vida. Ele não tinha medo de cadáveres, pois lidava com eles todos os dias. Talvez fosse remorso? Repulsa? S. não sabia. Sabia apenas que seu pai preferiu se manter longe, preferiu evitar olhar para o rosto da esposa uma última vez.
S. observou seu pai durante o velório. O rosto dele era uma máscara, parecida com as máscaras mortuárias dos faraós egípcios e aparentando ser tão velha quanto. Não expressava nenhuma emoção: tristeza, raiva, alívio. Nem mesmo indiferença. Era como se aquela mulher não tivesse sido sua esposa por tanto tempo, mas apenas um de seus clientes, alguém com quem ele só possuísse um vínculo profissional. Seu rosto estava mais inexpressivo do que o da mulher deitada no caixão.
véu negro, de chico araújo
Chico Araújo, natural de Manaus-AM, professor de Língua Portuguesa e Literatura. Publicou seis livros solo: “O lado escuro da Lua” (contos — pela Giostri Editora); “O Planeta Ancestral”, “Passagem para Érebo e outros contos” e “Eu só queria escrever uma história de terror! e outros contos” (contos — todos pela Arkanus Editorial); “Baile de máscaras” (romance — pela Caravana Editorial); “Fukushu” (romance young adult — pelo Selo Arrepio da Editora Folheando). Entre 2021 e 2024, participou de mais de 50 antologias de contos.