Leia aqui um trecho de "à beira do véu", de Fabrício Escaleira:
O carro parou num trecho de terra batida onde o asfalto dava lugar ao mato cerrado. A névoa rastejava entre as árvores, espessa como se tivesse vontade própria, sussurrando segredos antigos.
Nos arredores da Floresta do Jacarandá, pouco visitada até pelos moradores locais, Almeida o aguardava, carregando o peso de quem viu demais para acreditar.
— Bom dia, chefe — tirou o boné, coçando a testa úmida —. O corpo tá ali. Não mexemos em nada. A perícia está a caminho, mas... você precisa ver com seus próprios olhos.
Caio desceu cuidadosamente o barranco molhado. O chão exalava cheiro de folhas podres, misturado a um ferro retorcido — sangue.
— Quem encontrou? — perguntou, a voz baixa.
— Um andarilho. Disse que veio se esconder da chuva e deu de cara com a cena. Tá na viatura, bem abalado. Não quer se envolver, e eu não o culpo.
Almeida apontou para um tronco grosso.
O corpo pendia ali, amarrado por fios de arame farpado. Homem, quarenta e poucos anos, sem documentos. Camisa aberta, peito exposto, cortes profundos no abdômen, feitos em linhas que pareciam mais símbolos do que ferimentos.
Acima da cabeça, gravado na casca com sangue coagulado, um círculo irregular de onde saíam raízes retorcidas.
Caio ficou imóvel. O tempo pareceu travar.
Almeida o observava, cruzando os braços.
— Isso é coisa de seita, né? Algum maluco com muito tempo livre. Ritual, essas porras.
Caio apertou os lábios, lembrando a parede da casa que resistira ao fogo — o mesmo desenho, as mesmas raízes.
Ele não respondeu, mas o olhar denunciava: não era “coisa de maluco”.
Sua mente voltou, fugaz, ao incêndio — o calor, o cheiro da fumaça, o grito do filho cortando a noite como uma lâmina. Um flash rápido, quase um sonho ruim, a imagem do emblema feito com sangue na parede.
Ele piscou, retornando ao presente, ao cheiro forte de sangue e terra.
— Você está bem, delegado? — a voz de Almeida o trouxe de volta.
Caio apenas fitou o desenho como se ele pudesse se mexer, respirar.
O passado não ficaria para trás.
Ele se abaixou, observando o sangue coagulado escorrendo até o musgo, o chão encharcado de violência. Galhos quebrados e pegadas mal definidas denunciavam pressa ou brutalidade.
Almeida circulava atento, até parar num pequeno monte de pedras, parcialmente coberto por folhas úmidas.
— Tem alguma coisa aqui — disse, afastando as folhas com uma caneta.
Debaixo, um botão metálico, enferrujado, mas com um brasão visível: o antigo símbolo da polícia do Rio de Janeiro.
Caio franziu a testa.
— Conhece?
— Meu avô usava um desses nos anos 40 ou 50. Meu pai colecionava, mas achar um aqui, nessa cena... — suspirou, a suspeita crescendo.
Almeida sorriu de canto, lendo seus pensamentos.
— Querem te provocar?
— Talvez. Ou querem chamar atenção de outro jeito.
O inspetor resmungou.
— Não parece coisa de bandido comum. E também não é só ritual. Tem algum planejamento.
Caio olhou mais uma vez para a árvore. O símbolo parecia pulsar, úmido e vivo.
— Vamos isolar a área. Quero saber se esse botão tem digitais e rastrear quem o usou. Pode ser um recado antigo, ou um aviso novo.
Enquanto voltavam pela trilha, a chuva engrossava, como se a floresta começasse a chorar.
Ao longe, um estalo seco fez Caio parar. O olhar percorreu as sombras. Uma silhueta fugidia desapareceu entre as árvores.
Ele apertou o coldre.
O mistério estava apenas começando.
à beira do véu, de fabrício escaleira
Fabricio de Castro Escaleira nasceu em 7 de maio de 1979, em Teresópolis, cidade onde vive até hoje. Apaixonado por histórias sombrias e investigativas, é o criador de Umbria e das tramas que acompanham o investigador Caio Cortez. Casado e pai de Caio e Arthur, dedica-se intensamente à escrita, construindo um universo literário capaz de deixar até os mais céticos em dúvida. Considera-se apenas um homem comum, mas com a rara capacidade de enxergar através do Véu.

